Capitalismo de plataformas encontra terreno fértil no excedente de mão de obra do Brasil
O economista Euzébio Jorge de Sousa aponta os fatores que favorecem a precarização e informalidade no mercado de trabalho brasileiro.
Na manhã de sábado, 16 de dezembro, o economista Euzébio Jorge Silveira de Sousa, presidente do CEMJ – Centro de Estudos e Memória da Juventude, proferiu uma apresentação instigante na abertura da reunião ampliada do GT Mundo do Trabalho. Em sua exposição, Sousa abordou as transformações do trabalho e sua relação intrínseca com as metamorfoses do sistema capitalista.
“Estamos em um momento emblemático de transformação do trabalho, e observar como o trabalho é realizado torna-se crucial para entender as mudanças na sociedade contemporânea.”
A análise iniciou-se com a percepção de que compreender as mudanças no mundo do trabalho é essencial para desvendar as transformações em curso no capitalismo contemporâneo. Sousa destacou diferentes abordagens possíveis, como a evolução do processo de financeirização e mudanças institucionais relevantes. Contudo, o cerne da discussão concentrou-se na desconfiguração do padrão de interdependência no pós-guerra, resultando na construção de uma economia global integrada por meio das cadeias globais de valor, impulsionadas pelas mudanças tecnológicas da década de 1970.
Dividindo sua fala em duas partes, Sousa explorou a transformação global do capitalismo e a maneira como o capitalismo subdesenvolvido se insere nesse contexto. Destacou a importância de identificar os aspectos estruturais que perpetuam padrões antigos no sistema econômico e limitam seu avanço. Ressaltou que o objetivo central da discussão é analisar não apenas as mudanças no mundo do trabalho, mas também as transformações em um capitalismo que falhou em cumprir suas promessas desde as implementações profundas do neoliberalismo na década de 90.
Leia a cobertura da reunião ampliada do GT Mundo do Trabalho:
As contradições reveladas pelas transformações no trabalho industrial
Capitalismo de plataformas encontra terreno fértil no excedente de mão de obra do Brasil
Trabalho do agricultor familiar sofre transformações impulsionadas pelo agronegócio
GT Mundo do Trabalho debate transformações na organização da classe trabalhadora
“Todas as mudanças que aconteceram na década de 90, na implementação mais profunda do neoliberalismo, ele fez um conjunto de promessas para a sociedade. O objetivo fundamental dessa mesa é fazer essa discussão sobre as transformações do mundo do trabalho, mas também as transformações de um capitalismo que já não tem dado conta de realizar suas promessas.”
Um ponto crucial abordado por Sousa foi a ascensão do setor de serviços no Brasil e seu ganho de proeminência devido à economia de plataforma e à crescente flexibilização dos mercados. Ele destacou que a década de 1970 testemunhou uma mudança emblemática no capitalismo global, que, impulsionado pela terceira revolução tecnológica industrial e pela crescente financeirização, demandava uma flexibilização crescente das relações de trabalho.
“Esse capitalismo, esse capital que se desvencilha das suas rédeas na década de 70, ele vai tentar ao máximo suplantar fronteiras nacionais para ocupar espaços de valorização em qualquer lugar do mundo.”
O economista ressaltou que esse processo de flexibilização não foi natural, mas sim construído para atender à necessidade de um capitalismo global, desvinculado das fronteiras nacionais, buscando valorização em qualquer lugar do mundo. A abertura comercial e financeira nas décadas seguintes intensificou esse movimento, levando a uma busca por menores tributações e direitos trabalhistas em diferentes países. “Esse processo não foi natural, não é um processo em que o próprio capitalismo foi encontrando formas, foi sugerindo que relações de trabalho mais flexíveis são uma tendência natural da expansão do processo econômico.”
A discussão se aprofundou na realidade brasileira, marcada por um excedente estrutural de força de trabalho, desemprego elevado e salários decrescentes. Sousa argumentou que essas características estruturais criam um terreno fértil para a expansão da economia de plataforma no país, exemplificando com o setor de entrega de comida por aplicativo.
Ao abordar a economia de plataforma, ele destacou a dificuldade de regulamentação devido à negação das empresas de serem empregadoras, gerando uma diversidade de associações que complicam as negociações trabalhistas. Ele enfatizou a importância de entender o mercado de trabalho brasileiro, permeado por um excedente estrutural de força de trabalho e altos níveis de informalidade.
Ele ainda observa que o mercado de trabalho no Brasil enfrenta desafios complexos, refletindo uma desigualdade profunda. Argumentou que a própria dinâmica do capitalismo no país se beneficia dessa desigualdade, utilizando-a de maneira funcional para gerar uma acumulação peculiar de capital, especialmente através do processo de financeirização.
O economista destacou que o Brasil lida de forma funcional com a reprodução da pobreza, encontrando na economia de plataforma uma maneira de integrar esse processo de reprodução de forma mais articulada com a acumulação de capital. A discussão suscitou reflexões sobre a desigualdade estrutural e os desafios enfrentados pelo Brasil no cenário das transformações do trabalho e do capitalismo global.
“O que marca a nossa economia, o que marca esse movimento que acontece do capitalismo global é que nós lidamos no Brasil com uma desigualdade tão profunda, mas tão profunda, que a própria dinâmica do capitalismo aproveita, reproduz e utiliza de forma funcional essa reprodução crescente da pobreza para gerar um tipo sui generis de acumulação de capital.” Ele ainda acrescenta: “O capitalismo aqui no Brasil lida de forma bastante funcional com isso e ele vai encontrar na economia de plataforma uma forma institucional de fazer com que este movimento de reprodução desse capitalismo aconteça de uma forma em que integre de um jeito mais homogêneo e de forma mais articulada com o processo geral de acumulação e que esse é o processo de financeirização.”
Impacto da economia de plataforma
Após um debate com a audiência, Souza apresentou reflexões sobre a natureza da economia de plataforma como inovação tecnológica. Ele abordou questões fundamentais sobre a relação entre mudanças tecnológicas, a transformação do trabalho e as dinâmicas sociais contemporâneas.
O economista começou destacando as diferentes abordagens para entender as mudanças históricas, mencionando as escolas de pensamento que enfocam elementos econômicos, políticos, institucionais e tecnológicos. “Quando discutimos mudanças históricas, há escolas de pensamento distintas, algumas focam em movimentos econômicos, outras em elementos políticos, mas [Joseph] Schumpeter destaca as mudanças tecnológicas como geradoras de destruição criativa.” Nesse contexto, ressaltou a contribuição de Schumpeter, cuja teoria da “destruição criativa” postula que as inovações tecnológicas destroem partes do capital, abrindo caminho para novas formas de organização da produção.
No entanto, ele enfatizou que uma abordagem exclusivamente tecnológica é limitada, citando Marx para ampliar o escopo da análise. “Schumpeter olha as mudanças tecnológicas como determinantes, enquanto Marx vai além, enfatizando a importância da contradição entre forças produtivas e relações de produção, observando a base material e suas implicações sociais e políticas.” Para Marx, as mudanças tecnológicas são intrinsecamente ligadas às relações de produção e às contradições sociais. Sousa destacou a visão marxista de que o avanço das forças produtivas gera contradições políticas, sociais e de luta de classes, impulsionando mudanças profundas na sociedade.
O economsita abordou a questão do desemprego, introduzindo o conceito de “excedente estrutural de força de trabalho” e argumentando que o Brasil não enfrenta um desemprego estrutural, mas sim uma superpopulação relativa de trabalhadores dispostos a aceitar condições precárias em busca de subsistência. Ele comparou a realidade brasileira com a europeia, destacando a pressão por emprego no Brasil, onde as pessoas se engajam em qualquer atividade para sobreviver.
“O capitalismo exige uma superpopulação relativa, um exército industrial de reserva. O trabalho de plataforma incorpora esse contingente, criando uma categoria especial de trabalhadores com flexibilidade para ofertar trabalho.”
O debate avançou para o contexto específico da economia de plataforma, que, segundo Sousa, incorpora uma parcela ainda maior da população que seria considerada uma “superpopulação relativa.” Ele enfatizou que os trabalhadores nessas plataformas muitas vezes realizam várias atividades remuneradas, ilustrando com exemplos práticos de indivíduos que combinam diferentes formas de trabalho, como o caso de um montador de móveis que também atua como motorista de Uber, enquanto se desloca pela cidade.
“A economia de plataforma é pró-cíclica, exacerbando a crise ao aumentar a oferta de trabalho durante períodos de recessão, levando a menores remunerações, menor demanda agregada e crises mais profundas.”
Uma preocupação central de Sousa foi a natureza pró-cíclica da economia de plataforma, agravando os efeitos das crises ao aumentar a oferta de trabalho e reduzir as remunerações. Ele ressaltou que essa dinâmica contribui para uma sociedade de baixos salários, onde os trabalhadores buscam constantemente oportunidades para aumentar suas rendas. “No Brasil, não temos desemprego estrutural, mas sim um excedente estrutural de força de trabalho. As pessoas trabalham em qualquer condição para subsistir, o que gera uma superpopulação relativa.”
Ao concluir, Sousa destacou a necessidade de compreender as mudanças na produção, na geração de valor e na acumulação no contexto da economia de plataforma. Ele mencionou o fenômeno da “servitização”, onde produtos tangíveis se transformam em serviços intangíveis, como evidência da evolução das relações econômicas. “O Uber é um exemplo, onde o tempo de transporte é mercantilizado, levando à mercantilização de todas as esferas da vida.”
Por fim, Sousa levantou o desafio de utilizar a tecnologia não apenas para otimizar processos existentes, mas para promover uma transformação mais ampla. Ele enfatizou que a solução requer uma abordagem que vá além do mercado, incluindo um projeto nacional de desenvolvimento e a intervenção do Estado na regulação e orientação da inovação tecnológica. “O desafio é utilizar a tecnologia de maneira mais significativa, não limitando a inovação a empregar força física, mas criando um projeto nacional de desenvolvimento e de Estado para lidar com as transformações na sociedade contemporânea.”
(por Cezar Xavier)