A governabilidade de Javier Milei depende do apoio de Mauricio Macri e Patricia Bullrich, talvez até de alguns peronistas mais liberais.

A surpreendente vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais argentinas tem provocado apreensão sobre o futuro político e econômico do país. Em uma entrevista com a analista internacional Ana Prestes, a reportagem destacou alguns pontos cruciais que moldaram o cenário eleitoral e que agora delineiam os desafios para o novo governo.

A entrevista de Ana Prestes fornece uma análise perspicaz do cenário político argentino pós-eleição, destacando desafios econômicos, dinâmicas de poder e implicações regionais e internacionais.

A possível exclusão da Argentina do BRICS foi avaliada, dada sua importância na economia latino-americana. “A partir de 2024, a Argentina ia participar do BRICS, e não deve participar mais. É muito… não sei se a palavra é decepcionante, mas é desanimador”, avaliou ela, embora considere que isto favorecia mais a Argentina, do que o bloco. A birra de Milei com o bloco é ideológica, preferindo se alinhar exclusivamente à Washington e à União Europeia, em vez de incluir China, Rússia e países africanos e do Oriente Médio.

A Argentina está entre as maiores economias sul-americanas, junto com Brasil, México, Chile e Colômbia. Sua entrada nos BRICS foi um enorme esforço do presidente Lula, com o objetivo de fortalecer a integração continental. O Brasil articulou investimentos importantes no Banco dos BRICS para a Argentina, que sofre com os efeitos de uma dívida pesada no Fundo Monetário Internacional (FMI).

Quanto à relação com o Brasil, Ana observou que Milei tem adotado uma postura mais fechada, sinalizando um possível afastamento do Brasil e da China, ainda que meramente simbólico. “Vai ser uma relação do tipo: o Lula não vai lá, ele não vem aqui, se encontrar o Lula não aperta a mão, falta uma reunião ou outra”. 

Contudo, ela ressaltou que questões comerciais e diplomáticas não serão encerradas abruptamente. “Nos temas comerciais, relações e protocolos que os dois governos cumprem, acordos que estejam em curso, isso não acaba de uma hora para a outra. As próprias elites do país têm seus interesses no Brasil”, salientou.

A repercussão internacional também destaca a reação positiva da ultradireita, incluindo líderes como o brasileiro Jair Bolsonaro e o americano Donald Trump. Da parte do governo dos Estados Unidos a reação foi mais fria, sem declaração de Joe Biden. 

“Aqui na América do Sul, o [Gustavo] Petros, presidente da Colômbia, teve uma reação forte, falando que o neoliberalismo não resolve a vida de ninguém. O presidente Lula fez uma declaração mais sóbria, mas há muita apreensão nos setores progressistas”, resumiu ela.

Clima de frustração e revolta

Ana, inicialmente, confessou sua surpresa diante da diferença de quase 12 pontos percentuais a favor de Milet, destacando que muitos acreditavam que a disputa seria mais acirrada com chances maiores para a vitória de Sérgio Massa, assim como ocorreu no Brasil, na Colômbia e no Chile. 

O apoio significativo da juventude foi apontado como um dos fatores determinantes, com 69% dos votos de pessoas entre 16 e 24 anos indo para Milei. “70% é muita coisa. Há um elemento de mobilização de um sentimento de revolta, de profunda frustração, decepção, porque falta comida na mesa mesmo, faltam condições materiais, porque a economia está destroçada.” Ela acredita também que houve uma opção por um político de perfil caricato, num “casamento desastroso pra Argentina, sua democracia e o futuro próximo”.

Quando questionada sobre a capacidade do governo cessante em comunicar uma saída para a crise econômica, Prestes afirmou que a campanha de Sergio Massa não conseguiu convencer as pessoas de que representava algo diferente. Ela foi categórica: “Não convenceu as pessoas nesse sentido”. 

Ela salientou que a população enxergava, no máximo, uma continuidade, e a escolha do atual ministro da Economia, Sérgio Massa, como candidato, justamente durante uma crise econômica foi um agravante que impediu dissipar essa percepção. A falta de uma visão convincente e a percepção de continuidade foram elementos que contribuíram para a derrota.

Governo da incerteza

Sobre as propostas do novo governo, Ana Prestes destacou que Milei tem enfatizado questões como dolarização, extinção do Banco Central e privatizações, incluindo setores da comunicação e a petroleira. Essas medidas, junto com a promessa de um governo enxuto com apenas oito ministros, compõem o núcleo das propostas iniciais que, de alguma forma, ele vai ter que mostrar para seu eleitorado que é capaz de cumprir. 

Ela destacou que, inicialmente, esta redução do número de ministros faz parte da retórica da austeridade fiscal. “Não tem ministro de Trabalho, não tem ministro da Saúde, não tem ministro de Educação, não tem mais nada disso”. 

Ela observou que a Argentina é um país cheio de subsídios, o que pode gerar resistência à austeridade proposta por Milei. Considera que a dolarização deve sofrer mais resistências para implantação. “Mas a questão da extinção do Banco Central, do ponto de vista meramente administrativo e burocrático, pode ser até que Milei consiga fazer como algo mais simbólico, porque outros departamentos podem assumir funções regulatórias do Banco Central, além da emissão de moedas e tudo mais”, explicou.

Ao discutir a governabilidade, Ana apontou que Milei dependerá de alianças no Congresso, especialmente com setores da burguesia, as camadas médias e grandes empresários. Ela enfatizou que o partido de Milei sozinho não terá a força necessária para implementar suas propostas. “O governo dele está nas mãos do [Maurício] Macri e da [Patrícia] Bullrich”, disse ela, sobre adversários que o apoiaram na campanha de segundo turno. Mesmo assim, ela avalia que Milei ainda vai precisar ampliar para setores peronistas mais liberais, para conseguir ganhar as votações. 

Ana enfatizou que é possível que haja movimentos de adesão de amplos setores conservadores ao governo, como é comum quando alguém assume a Presidência. “A gente sabe que quem é governo tem força gravitacional. Quem ganha a Presidência acaba tendo um poder de atração. Então, podem migrar pessoas para o partido dele também”, declarou ela.

A cientista política mencionou a foto icônica de Milei com o atual presidente da Argentina, Alberto Fernández, como símbolo do início da transição. Na foto, ambos apareceram juntos na terça-feira (21) na primeira foto oficial após o resultado do segundo turno das eleições, na residência oficial demonstrando que o governo atual vai facilitar a transição para o novo governo. 

Finalmente, ao abordar o futuro do peronismo na Argentina, Ana previu que, apesar da derrota, o peronismo permanecerá forte. Internamente, haverá uma disputa por liderança na oposição, mas o peronismo, historicamente enraizado na sociedade argentina, continuará desempenhando um papel crucial.

“Com certeza vai ser uma oposição bastante forte. Pensando friamente, o peronismo pode até se reorganizar, se reestruturar internamente e forjar novas lideranças a partir dessa situação de oposição”, afirmou. Segundo ela, a sociedade argentina é extremamente mobilizada e organizada, com uma tradição de luta muito forte. “Não vai ser fácil a vida do Milei, porque vai ser muita pressão”. 

(por Cezar Xavier)