Manifestação solidariedade ao povo Palestino. Av. Paulista, São Paulo, SP. 04 de novembro de 2013. Foto: Roberto Parizotti.

Após um mês da insurgência do Hamas, Israel perdeu mais de 1.400 vidas e pelo menos 10.328 palestinos foram mortos em ataques israelenses, desde 7 de outubro, e o conflito continua escalando. Emir Mourad, secretário-geral da Confederação Palestina Latino-Americana e do Caribe (Coplac), que representa as comunidades palestinas no Continente, avaliou os rumos do conflito em entrevista. 

Mourad conta que seu avô libanês foi um líder muçulmano no vale do Beqa, e o levou para Jerusalém, com seis anos de idade. “De lá, pra cá, eu nunca apaguei o vínculo com a Palestina e fui adotado pela comunidade palestina. Embora eu seja paulistano, quando o pessoal me pergunta de onde eu sou, brincando, eu falo que sou da Palestina, eu sou de Jerusalém”.

Mas os vínculos continuam, pois Mourad tem um primo que é deputado no Líbano, e organizou atos recentes em defesa da resistência Palestina no Vale do Beqa. Seu tio já foi ministro da Educação e da Defesa. Seu pai é de Gaza, uma cidade no Líbano, homônima à faixa litorânea na Palestina.

Mourad expressa cansaço do moto perpétuo da opressão israelense sobre os palestinos. Ele não vê muita diferença entre esta última insurgência e tantas outras, desde antes de 1948, quando se estabeleceu o estado de Israel. Mas reconhece que as imagens espalhadas pelas redes sociais explicitam as questões em jogo e os nomes envolvidos. Para ele, a gravidade do massacre une os palestinos como nunca em torno de sua causa. “O sentimento é que a Palestina vencerá”, diz ele.

Leia abaixo a entrevista em que ele comenta também a inoperância da ONU, o esforço do Brasil e a queda na popularidade de Netanyahu, conforme o conflito avança.

Você percebe, Emir, diferenças comparativas entre este conflito e outros que você acompanhou? 

A única diferença que eu percebo é a escala maior do genocídio. Isso que diferencia, hoje, o que Israel está cometendo diariamente, há 75 anos. A questão palestina não nasceu agora, dia 7 de outubro. Não faz um mês que existe a questão palestina, a injustiça contra o povo palestino e a resistência palestina. 

Essa dimensão do massacre que o senhor aponta, muda algo nas características desse conflito em relação a outros? Especialmente, agora que convivemos com as redes sociais, as repercussões junto à comunidade internacional não são diferentes?

Evidente que as redes sociais ajudam a divulgar em fotos reais, no terreno, o que está acontecendo. As pessoas estão vendo que, com a justificativa do direito de Israel se defender e que o Hamas usa escudos humanos, pode-se matar todo mundo. Então, é carta branca e os Estados Unidos deram essa licença para Israel. São cúmplices diretos desse massacre, desse genocídio que está acontecendo. 

O próprio secretário-geral da ONU falou no discurso dele, que isso não aconteceu no vácuo. Sociologicamente, a gente entende o que? O que aconteceu dia 7 de outubro foi uma resposta a anos de opressão e massacres. Lógico que a gente nunca quer ver civis envolvidos em nenhum conflito. Mas, quando os direitos nacionais de um povo são oprimidos por precisamente 75 anos, é evidente que isso vai explodindo de tempo em tempo. Novas ondas de resistência vão surgindo, como surgiu a primeira Intifada, a segunda Intifada, como foi a greve de 1936 e outras depois. E a limpeza étnica começou em 1947, antes de Israel ser proclamado um Estado. 

O que eu vejo, hoje, não sou eu que falo, mas vários governos e a população nas ruas, é que Israel será julgado por crimes de guerra e crimes de lesa humanidade. Isso é o que vai acontecer. O Tribunal Internacional vai julgar Israel pelos crimes de guerra que estão sendo cometidos. 

O senhor acha que este é o diferencial desse conflito? 

Claro, veja bem, o massacre de Sabra e Chatila em 1982, o massacre de Qana no Líbano, em 1996, Deir Yassin em 1948. São todos crimes de guerra. A questão é se o mundo vai se levantar contra esse regime de apartheid, tal qual foi o regime da África do Sul, que sofreu sanções econômicas, boicote internacional, tanto por parte de governos, como por parte da sociedade civil. 

Esse regime da África do Sul veio abaixo, foi desmantelado por decisão unânime da comunidade internacional. Agora, com Israel, essa mesma comunidade internacional age com dois pesos e duas medidas. Gritam pela Ucrânia, fazem sanções à Rússia e se calam diante de Israel. Israel é um pária internacional, nunca cumpriu uma resolução da ONU, continua impune. Essa impunidade com o apoio dos Estados Unidos e de outros aliados, que dão esse aval para Israel matar, assassinar crianças e mulheres.

Você acredita que Benjamim Netanyahu tem um perfil mais agressivo que outros líderes sionistas? 

Em 1967, quando Israel ocupa à força e é declarado ilegal pelo direito internacional, qual foi a determinação da ONU naquele momento? Que Israel tem que se retirar desses territórios. E, agora, quer reocupar a faixa de Gaza, pelas declarações que ouvimos, pelo que está acontecendo. E todos os governos israelenses que passaram, desde 67 até agora, continuaram construindo assentamentos judaicos nos territórios palestinos. Pelo direito internacional tem que ter o estado da Palestina, de fato. Então, a diferença é que uns constroem mais, outros constroem um pouco menos. É a diferença entre a Pepsi e a Coca-Cola, entendeu? Essa é a diferença dos trabalhistas, com o Likud, com a extrema-direita. Todos se unem para ocupar territórios palestinos.

Eles têm uma estratégia de dividir o povo palestino. Você tem a autoridade palestina muito enfraquecida, o Hamas que deflagra o conflito, e se parecem divididos. Na sua percepção, como essa organização dos palestinos evolui na história?

Eu posso te dizer o seguinte, acabou a desunião entre os palestinos. Agora não tem mais desunião. Agora está todo mundo unido, todos os grupos palestinos, todas as facções. Israel conseguiu unir o povo palestino. É evidente que havia uma desunião por questões políticas e de concepções de estratégia, mas isso já faz parte do passado.

Hoje, nós estamos com o povo palestino para tentar exigir o cessar-fogo imediato. É isso que o povo palestino está pedindo, a ajuda humanitária e que os direitos nacionais do povo palestino, o direito à autodeterminação e ao retorno dos refugiados sejam colocados em prática. Isso é o que resolve o conflito na região. Porque a questão palestina é a questão central do Oriente Médio. 

Hoje é um divisor da humanidade. Então, o que a gente está pedindo? Cessar fogo já, imediato. Pra acabar com essa matança. São 4 mil crianças, mais de 10 mil mortos. Isso a troco do que? Onde isso vai? Acabar com o Hamas? Eles já entraram várias vezes antes na Faixa de Gaza, já bombardearam quatro, cinco vezes, desde 2006. 

Você não acha que o objetivo maior seja ocupar aquela área? 

Estão dizendo que o objetivo maior é acabar com o governo do Hamas na Faixa de Gaza. É isso que é declarado. Porque eles não tem um plano ainda. Eles não conseguiram entrar em Gaza. Eles estão há mais de uma semana na periferia. Eles não entram em Gaza. Eles mostram alguns filmes na televisão, dos tanques e tal, de alguns tiros, mas você não vê eles entrando no centro de Gaza. 

Então qual é o objetivo disso? Reocupar Gaza, é entregar Gaza pra Autoridade Nacional Palestina, que já declarou que não vai aceitar, enquanto não tiver uma solução mais ampla pra questão palestina, porque eles não vão dividir de novo os palestinos. Nós não estamos brigando contra o Hamas, a nossa luta é contra o Estado genocida, racista e de apartheid de Israel. Essa é a luta do povo palestino. Não é nem contra o Hamas, nem contra a Autoridade Nacional Palestina, nem contra a Fatah. A luta hoje do povo palestino é uma só, é libertar a Palestina. 

Qual você acha que seja o destino de Gaza com essa perspectiva de uma invasão terrestre?

Olha, são vários cenários possíveis, eu não sei precisar realmente o que vai acontecer. O que eu estou vendo até o momento é uma dificuldade de Israel dominar o território. Isso que eu estou enxergando. 

Mas será que eles não entraram ainda por causa dos reféns em mãos da resistência palestina?

Israel diz que só faz o cessar-fogo depois que forem entregues os reféns. Não aprendeu nada com o passado, também? Então, eles estão assim num mundo do faz de conta. Os reféns vão ser entregues conforme troca de prisioneiros palestinos. Isso já foi declarado várias vezes, inclusive pelo Hamas, que falou que devolveria reféns na troca total dos 6 mil presos palestinos que estão nos cárceres israelenses. 

Agora, o que eles vão querer fazer com a faixa de Gaza? Como secretário-geral da Confederação, acredito que tem que chamar uma Conferência Internacional de Paz, em que as cláusulas aceitas pelo Conselho de Segurança e pela Assembleia Geral da ONU, desde 1948, até o presente momento, sejam implementadas. É isso que tem que acontecer com a faixa de Gaza. 

A faixa de Gaza, a OLP que negociou os acordos de Oslo, que Israel não cumpre. Claramente, qual é o consenso que existe no mundo, na ONU? Os territórios de 1967, os dois estados. E Gaza faz parte do Estado da Palestina. Gaza não é isolada do Estado da Palestina. É isso que tem que acontecer com Gaza. 

Gaza tem que ser parte do Estado da Palestina e declarar a independência desse Estado de fato, porque de direito o Estado da Palestina já existe. O Estado da Palestina é membro observador da ONU. Existem mais de 130 embaixadas do Estado da Palestina. Então, esse Estado de direito já existe. Israel, apoiado pelos Estados Unidos, não cumpre essa resolução. 

E mantém o controle sobre os territórios palestinos, porque nada circula livremente ali. 

Bloqueado desde 2006. Bloqueio total, não entra. Você acha que o Hamas fez túnel pra quê? Pra chegar as coisas. Pra manter as pessoas vivas, pra manter a comida entrando. 

Quer dizer que vai cercar e vai matar 2 milhões e 200 mil pessoas? Desde 2007, até agora, evidente que o pessoal de Gaza pode ter seu juízo sobre o que é o Hamas ou não, isso é outra coisa. Agora a questão é o seguinte, o povo palestino em Gaza está sendo massacrado. Essa é a questão de momento. Isso tem que parar imediatamente. E, logo após parar esse massacre, a Questão Palestina tem que ser resolvida via Conferência Internacional de Paz, onde as resoluções da ONU sejam cumpridas. 

Os organismos multilaterais estão se mostrando muito ineficazes nesse conflito. Parece que o conflito, inclusive, está acumulando efeitos sobre o papel desses organismos, como a ONU e outros. A própria comunidade internacional se mostra impotente. Você acredita que pode haver mudanças na dinâmica desses organismos com esse conflito? 

O próprio presidente Lula e o Brasil já propõem a reforma da ONU. Já existe essa proposta que passa, primeiro, por ampliar os membros permanentes do Conselho de Segurança. E segundo, que tenha um critério de votação e decisão diferenciado, que possa refletir o atual estágio mundial de correlação de forças, entre o Sul Global com o Norte. O G7 e o Conselho de Segurança da ONU não dão mais conta. 

Nós temos hoje atores diferenciados, mostrando uma nova cara do multilateralismo, um novo jeito de se fazer relações entre Estados e nações. Porque as parcerias feitas pelos Estados Unidos são ganha-perde e as relações BRICS são ganha-ganha, ou seja, todo mundo tem que ganhar nas relações. Com os EUA, um ganha e o outro perde. É uma correlação de forças dos vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, até hoje. Então, eu acredito que o BRICS, outros blocos que se formam, o próprio Mercosul, teria um papel de tentar se fortalecer mais para contribuir e equilibrar o poder de decisão mundial. Nesse conflito atual, o mundo inteiro, 12 países, votaram no Conselho de Segurança da ONU, para ter uma resolução de cessar-fogo humanitário. E o veto único foi de quem? Dos Estados Unidos. É totalmente injusta essa relação de decisão do Conselho de Segurança da ONU.

Você não acha que isso está refletindo também uma hegemonia dos Estados Unidos? Porque fala-se que os Estado Unidos estão perdendo influência e poder com esses novos blocos que surgem, mas os Estados Unidos estão definindo e decidindo o que acontece naquela região…

Não, eu acredito que seja o contrário. Eu acredito que os Estados Unidos estão perdendo posições. Eu acho que a ida do Biden a Israel foi mais por desespero de tentar manter a força de um aliado no Oriente Médio. O Irã e a Arábia Saudita fizeram um acordo de relacionamento proporcionado pela China. A questão da Ucrânia também é outro divisor de águas. Sem dar um único tiro sequer, sem invadir um país sequer, A China está conquistando o mundo. Isso que pesa. 

Fizeram mil sanções contra a Rússia e hoje estão vendo que a questão não é só a Ucrânia. A questão é a Palestina também. Então o peso das decisões vão aumentando e isolando os Estados Unidos perante a comunidade, perante os povos. 

E o Biden ainda diz que o o míssil que caiu sobre o hospital foi dos palestinos, não foi de Israel. Então são mentiras que estão sendo produzidas que vão isolando cada vez mais o poder dos Estados Unidos a nível mundial. Esse massacre que está acontecendo é prova de que o Estados Unidos não pode ser um ator de negociação de paz no mundo. 

Como você vê o papel do Brasil nesse conflito?

Os Estados Unidos não, mas o Brasil tem condições de ser um mediador da paz, de ser um ator da paz. Por quê? Porque os EUA tomou um lado nesse massacre. Todo mundo está vendo isso. 

O Brasil tem tido um papel importante. Até agora, os 34 brasileiros ainda não saíram, mas eu acredito que o presidente Lula devia cortar as relações diplomáticas com Israel. Eu acho que o governo brasileiro precisa ter posições mais duras frente a Israel. 

A balança comercial pesa em desfavor do Brasil, de quase um bilhão de dólares. Então, não vale a pena ter relações comerciais! Pra que um estado genocida desse que não estabelece nenhuma trégua humanitária? Depois que matar todo mundo dentro de Gaza, aí ele faz o cessar-fogo? Isso não é admissível, do ponto de vista humanitário. Não é concebível uma situação dessa. Por isso que eu acho importante o governo brasileiro e o presidente Lula agirem o mais rápido possível para tomar posições mais duras em relação a Israel. 

Por que você acha que está havendo essa dificuldade de resgatar os brasileiros? 

Por que eles estão fazendo isso? É retaliação? Qual o problema com o Brasil que eles têm? Qual o mal que o Brasil fez a Israel? Defendeu os brasileiros que estão lá? Defendeu o direito internacional? Reconhecer o estado da Palestina? Isso é motivo para matar e aprisionar as pessoas? Então, é essa pergunta que tinha que ser feita para Israel responder. Essa é a covardia que eles estão cometendo. Então, é uma boa resposta que o presidente Lula podia obter deles. Vamos ver. Tem prazos que já foram dados e não foram cumpridos. 

Agora tá tendo um problema com a popularidade do Netanyahu com muitas manifestações e pedidos de renúncia. Mais de 70% dos israelenses estão irritados com o fato dele não ter conseguido prever o que aconteceu, não estar conseguindo proteger os reféns. Você acredita que isso muda um pouco o perfil de governo, caso o Netanyahu caia?

Antes do início desse massacre, já existia um embate de parte da população Israel contra o governo, devido à reforma judicial do Supremo Tribunal para proveito próprio. No próprio dia 8, o maior jornal israelense, o Haaretz, publicou um editorial colocando a culpa do dia 7 de outubro em Netanyahu. A culpa dessa guerra é dele, e não do Hamas. Então, ele estava realmente numa situação muito crítica, e é evidente que ele não se sustenta. 

Qual é o sentimento que o senhor tem, depois de um mês de massacre, e vendo que Israel opera para estimular o surgimento de novos grupos de resistência? 

Olha, o sentimento que a Palestina vencerá. Esse é o sentimento. Com muita dor no coração, inclusive, de ver as cenas, mas é a esperança, sabe? Nunca podemos perder a esperança e a justiça da história. A história nos ensina que todo povo que se vê aprisionado, tende a se libertar. Ele vai lutar pela sua libertação. E que possamos ter o Estado palestino, laico, independente, com capital em Jerusalém e o retorno dos refugiados palestinos. Eles somam hoje mais de 6 milhões. 

Na faixa de Gaza tem um organismo que se chama UNRWA, que é o organismo da ONU que cuida dos refugiados palestinos. Porque 70% dos palestinos que estão em Gaza são refugiados de 1948, que foram expulsos das suas terras e fugiram para a faixa de Gaza. Então, pela Decisão 194 têm o direito ao retorno. 

Esses funcionários da ONU já foram assassinados, também, se eu não me engano uns 88. Então esse é o meu sentimento. Que pare logo esse massacre e que o mundo ajude os palestinos a resolver a solução do estado da Palestina e do retorno dos refugiados.

(por Cezar Xavier)