Sob pressão interna e internacional, Benjamin Netanyahu rendeu-se a um acordo com o Hamas, e agora está na encruzilhada da interrupção e do reinício dos bombardeios sobre um território já destruído.

O recente acordo de trégua na Faixa de Gaza trás consigo consequências de uma intermediação que aflora tensões internas, tanto em Israel como nos Estados Unidos. Para além disso, os termos do acordo são ambíguos e reveladores das disposições em conflito, assim como a pausa no conflito abre novas oportunidades diplomáticas para um debate pela paz. Para avaliar estas possibilidades, a reportagem consultou a analista internacional Ana Prestes.

Ana oferece uma perspectiva detalhada e crítica, discutindo a temporalidade tardia desse pacto e suas implicações tanto para a política interna israelense quanto para as relações diplomáticas globais. Uma das percepções que têm aflorado entre analistas é a rendição de Israel e EUA a um acordo com um grupo que ambos consideram terrorista, mas que gerou enorme desgaste para a imagem dos dois países.

“Israel teve que admitir nominalmente que negociou e fez um acordo com o Hamas. Um grupo com quem ele falou que não teria nenhuma conversa, não teria nenhuma negociação, que é um grupo terrorista e que deveria realmente continuar os bombardeios”, ressalta.

No entanto, do ponto de vista diplomático, a trégua isola Israel e cria uma oportunidade para que o mundo veja a possibilidade de negociações pacíficas. Para a especialista, o acordo traz uma vantagem moral para o Hamas e os palestinos. “De mostrar ao mundo que, desde o princípio houve propostas de acordo, que foram rejeitadas por Israel”, acrescenta.

“O ônus de retomar os bombardeios, de retomar a guerra, vai ficar do lado de Israel. Então o mundo vai ver que é possível negociar a paz e ter alguma trégua. ‘E agora vocês vão começar o bombardeio de novo?’ Então, esse grande constrangimento internacional vai ficar nas mãos de Israel”, observa.

Para a especialista, é extremamente importante como o Hamas sai fortalecido desse acordo, porque “é reconhecido como um interlocutor, como uma força política, como um ator”, diante de uma assimetria gigantesca entre as forças militares em disputa. Resta saber como o grupo aproveitará essa força política. “Do ponto de vista diplomático, eu penso que vai forçar uma situação interna da sua representação também, ali na Palestina. Quem fala com o mundo pela Palestina?”, questiona Ana.

Termos favorecem o Hamas

A ambiguidade nos termos do acordo sugere que o Hamas sai fortalecido. Mas Ana Prestes também interpreta o acordo como uma estratégia de Israel para se reorganizar militarmente durante a trégua.

A analista observou que os termos discutidos com o Hamas favorecem suas demandas de maneira inesperada, destacando a liberação de prisioneiros palestinos que não estava inicialmente prevista. Essa mudança nos termos indicou um ponto de vantagem para o Hamas.

“Isso não estava em cima da mesa. Até outro dia, isso não era nem cogitado por Israel. Aliás, muitos analistas falam que toda aquela ação do dia 7 de outubro era justamente para a libertação dessas pessoas, dos palestinos que estão nas prisões de Israel sem julgamento, sem nenhum processo legal. Simplesmente prisioneiros de guerra, prisioneiros políticos ou reféns, como se preferir falar”, avaliou.

Ela também considera que esses dias de cessar fogo podem ser importantes para a entrada de suprimentos.

Ao discutir as vantagens da trégua, a analista aponta que, do ponto de vista militar, Israel tem mais a ganhar, permitindo uma pausa para reorganização logística e militar. Ana Prestes apontou que Israel terá tempo para se reorganizar, reequipar e estudar estratégias, enquanto a insurgência palestina enfrenta restrições significativas. “Eles têm muito mais margem de manobra. Que margem de manobra tem a insurgência palestina de se reorganizar, de se esquivar, ou seja, o que for? Ela está absolutamente cercada e bombardeada”.

Aparentemente, o Hamas não precisa de trégua para sua logística que é toda invisível e de baixo perfil, como dizem analistas de segurança. Para continuar sua gigantesca empreitada militar, por outro lado, Israel mantém um ritmo frenético que demanda estoque de arsenal militar de grandes proporções e custos. Assim, a trégua amplia prazo para se reabastecer e repensar estratégias.

Prioridade ao genocídio

Ana expressa sua percepção de que o acordo veio “tarde demais” e destaca que reflete a relutância de Israel em priorizar a vida. “Eu penso que veio tarde e veio para demonstrar a indisponibilidade de Israel de privilegiar os ataques, o massacre, o genocídio e não a preservação da vida, inclusive dos seus próprios nacionais, dos próprios israelenses”, enfatizou.

Ela observa um debate interno em Israel, destacando que setores conservadores resistiram à trégua, acreditando que não era necessária pois a situação já estaria sob controle. Destacou-se que a questão interna em Israel reflete uma divisão significativa, com uma ala ultradireita resistindo ao acordo. Ela menciona que há divisões sobre a abordagem pós-7 de outubro.

“Existe um setor dentro do governo israelense que acha que se der uma hora de trégua, é uma hora em que o inimigo vai se equipar, vai se reorganizar. Tanto é que a reunião ontem de gabinete do Netanyahu e seus ministros, começou com ele falando estamos em guerra e a guerra vai continuar”, relatou.

As pressões das famílias dos reféns também influenciaram na tomada de decisão, evidenciando a complexidade política e social dentro do país. Ela conta que, um dia antes, houve uma tensão importante porque havia uma proposta de pena de morte para os prisioneiros palestinos em Israel. “Houve uma revolta grande das famílias dos reféns, no sentido de que medidas como essa só agravariam a situação daqueles que estão em Gaza, em poder do Hamas e das outras forças de insurgência palestina”, conta ela. Também existem famílias norte-americanas com reféns lá na Palestina, que também estão pressionando muito o governo.

Além das pressões internas em Israel, a analista aponta que o governo Biden enfrenta desafios consideráveis. Com a baixa de popularidade, há uma pressão crescente dentro do governo e entre os democratas nos Estados Unidos, com críticas ao apoio norte-americano ao que é chamado de genocídio em Gaza. Há preocupações com a chancela a um possível genocídio em Israel discutidas como fatores relevantes, principalmente entre a juventude americana.

“O grande termômetro desse período de trégua vai ser a reação interna na sociedade de Israel e também nos Estados Unidos. Isso vai jogar papel no sentido de se eles vão continuar apostando ou não na guerra”, pondera.

Reações da comunidade internacional

Ana Prestes abordou as reações globais, mencionando que, de forma geral, a trégua é bem recebida por quem defende a paz, como o governo brasileiro. Ela ressaltou a oportunidade para atores diplomáticos intervirem, chamando a atenção para a possibilidade de avançar em direção ao fim do conflito.

A visão de Ana Prestes sobre a reação internacional é mista. Ela destaca que, enquanto qualquer trégua é bem vista para aqueles que buscam a paz, por outro lado, se espera um cessar-fogo, e não uma mera trégua de quatro dias. No entanto, há uma expectativa de que os atores diplomáticos usem esse momento como uma oportunidade para a paz.

“E penso que o mundo, do ponto de vista dos atores diplomáticos, vão ter esse argumento de que é possível negociar, é possível conversar, é possível buscar saídas e não pela força das armas”, disse.

A cientista política enfatizou que a trégua representa uma janela para intervenções diplomáticas e um apelo à responsabilidade de Israel. Ela expressou esperança de que o período de pausa seja aproveitado para avançar em direção ao fim do conflito.

Ao finalizar a entrevista, Ana Prestes levantou a importância das reações internas em Israel e nos Estados Unidos como fatores determinantes para o desdobramento futuro do conflito. “Os atores das principais potências podem intervir no sentido de chamar Israel à responsabilidade da insanidade de continuar bombardeando e massacrando uma população que já está completamente destruída, vulnerabilizada, sem a menor condição de sobrevivência ali naquelas condições”, concluiu.

(por Cezar Xavier)