Projeto para vender Sabesp prevê o Estado como fiador de prejuízos
Na última terça-feira, 17 de outubro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, do partido Republicano, encaminhou o projeto de lei para a Assembleia Legislativa (Alesp) buscando a aprovação da privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Ele argumenta que o estado continuará como acionista controlador da empresa com poder de veto. Essa venda de um monopólio estatal da água, representa uma das principais e mais controversas promessas de campanha de Tarcísio de Freitas.
Em meio a essa movimentação política, Rene Vicente, tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema), compartilhou suas perspectivas sobre o projeto e os esforços para combater a privatização, em uma entrevista. Ele revela que o modelo de privatização em que o Estado continua como acionista importante, só serve para dar garantias aos acionistas de que o contribuinte vai bancar eventuais prejuízos. Por outro lado, o alardeado poder de veto que o governo teria não serve para proteger a população, quando o governo está comprometido com o setor privado.
A entrevista de Rene Vicente oferece uma visão interna sobre a privatização da Sabesp e as preocupações dos trabalhadores e sindicatos em meio a esse processo. A medida proposta pelo governo continua sendo debatida intensamente, e a opinião dos envolvidos nos sindicatos desempenha um papel crucial no entendimento das complexidades envolvidas na privatização de uma entidade vital como a Sabesp.
Rene observou que o projeto entregue por Tarcísio de Freitas já era previsto pelas entidades de trabalhadores e usuários envolvidas no debate sobre a privatização. Ele enfatizou que o modelo “follow-on,” que prevê a retenção de 15% a 30% das ações da Sabesp pelo governo estadual, já havia sido discutido anteriormente como parte da estratégia de pulverização no mercado acionário.
Acionista fiador
Segundo ele, o governo mantém uma participação significativa na Sabesp para agir como uma garantia para o setor privado caso ocorra uma crise hídrica. Rene lembrou que São Paulo tem uma das menores densidades hídricas da ONU, fornecendo cerca de 143 metros cúbicos de água por habitante, muito abaixo do ideal para a sustentabilidade hídrica. A ONU coloca que, em média, para ter uma sustentabilidade hídrica, tem que ter em torno de 1.500 a 2.000 m3 por habitante.
“Esse modelo que eles chamam de follow-on, que não vai entregar 100%, vai ficar de 15% a 30%, já conhecíamos, pois já tinha um modelo anterior que vinha desde os tucanos de pulverizar no mercado as ações e o governo ficar com 15%.”
Ele também destacou que, em caso de crise hídrica, o Estado teria que bancar os prejuízos e investimentos em projetos de interligação de reservatórios, uma vez que mais de 90% dos recursos vieram de bancos públicos.
O tesoureiro destacou a preocupação do sindicato com a segurança hídrica de São Paulo, um estado que já enfrentou crises significativas no passado. “Uma crise mais estendida dos reservatórios pode estourar. E assim como em 2015, quem bancou os projetos de interligação dos reservatórios, dos mananciais, mais de 90% da verba veio dos bancos públicos. É o Estado como fiador. Então é uma garantia pra eles. É até melhor mesmo que o Estado continue.”
Direito de veto
O sindicalista explicou que o projeto prevê o direito de veto do governo estadual, que atuaria como o principal acionista da Sabesp. Esse direito permitiria ao Estado vetar decisões administrativas da empresa.
Rene esclareceu: “O Estado tendo de 15% a 30%, como eles falam, mas eu acho que eles vão trabalhar dentro da linha do patamar mínimo, que é 15% mesmo. Ainda continuaria sendo um dos maiores acionistas e teria o poder de veto, de vetar alguma coisa que discordasse administrativamente dentro da empresa.”
Ele observou que, em uma perspectiva progressista, isso poderia representar uma contraposição às decisões da iniciativa privada. No entanto, Vicente apontou que o governo atual administra a Sabesp com uma gestão que já incorpora elementos da iniciativa privada.
Preparando para privatizar
Ele enfatizou que o presidente da Sabesp e outros cargos-chave na empresa têm ligações com a iniciativa privada e trabalham para facilitar a entrada do capital privado na empresa.
O dirigente sindical também expressou preocupação sobre o atual cenário político e a presença de entes privados na administração da Sabesp, mesmo antes da privatização. Ele destacou mudanças internas na empresa que, segundo ele, indicam uma preparação para a entrada do capital privado.
Rene destacou que, na administração atual, o enxugamento de recursos, a terceirização e a flexibilização já estão em andamento, preparando a Sabesp para a implementação de uma visão de mercado.
O argumento da tarifa
Rene destacou que o principal argumento utilizado pelo governo para ganhar o apoio da população é a promessa de redução do custo da tarifa de água. Ele explicou que o governo pretende financiar essa redução com o dinheiro arrecadado com a venda da Sabesp. No entanto, ele ressaltou que, em contrapartida, o projeto amplia o prazo de concessão entre a Sabesp e os municípios, estendendo-o de 30 para 60 anos.
No entanto, críticos alertam que uma redução inicial de tarifas poderia ser algo temporário e que, no longo prazo, a situação poderia ser mais complexa devido a questões econômicas e climáticas. A probabilidade é de que os preços sejam ainda maiores que hoje, no longo prazo.
Rene observou que a promessa de tarifas mais baixas é atraente, mas destacou que a garantia de manter essas tarifas a longo prazo não é clara. O projeto de privatização está vinculado ao dinheiro arrecadado com a venda da empresa. Já se comparou esta proposta com o morador que vende a casa para pagar aluguel com o dinheiro recebido.
O trabalhador da Sabesp também mencionou uma mudança importante no projeto de lei que amplia o prazo de concessão entre a Sabesp e os municípios. Atualmente, os contratos de concessão têm uma duração de 30 anos, mas o projeto de lei propõe estender esse prazo para 60 anos.
“Essa extensão do prazo representa um golpe dentro do projeto de lei, já que o governo dobraria o tempo de exploração da iniciativa privada, o que poderia comprometer a gestão a longo prazo dos recursos hídricos do estado”, diz Rene.
Subsídio cruzado e tarifa social
Rene observou que a privatização da Sabesp ameaçaria mecanismos importantes, como o subsídio cruzado, em que municípios mais lucrativos financiam o saneamento de municípios e áreas mais pobres. A privatização poderia comprometer esse sistema e tornar os serviços mais caros em áreas menos lucrativas. Atualmente, a Sabesp utiliza o subsídio cruzado para equilibrar o custo dos serviços em diferentes municípios.
“A privatização é uma ameaça ao subsídio cruzado, um instrumento vital que permite que áreas mais pobres se beneficiem das áreas urbanas com maior arrecadação”.
Com 60% dos municípios atendidos pela Sabesp tendo menos de 20 mil habitantes e aproximadamente 20% da população total atendida pela empresa, ele argumentou que essas áreas rurais e menos desenvolvidas dependem do subsídio cruzado para manter tarifas acessíveis.
Além disso, a tarifa social, que beneficia famílias em situação de vulnerabilidade, também estaria em risco, uma vez que as empresas privadas tendem a se concentrar em áreas mais lucrativas. A tarifa social, que atualmente atende cerca de 450 mil famílias vulneráveis na região metropolitana pode ser comprometida pela privatização.
As preocupações do sindicalista destacam a complexidade e a sensibilidade da questão, especialmente no que diz respeito ao equilíbrio entre a redução da tarifa para a população e a manutenção das políticas sociais essenciais para os cidadãos mais vulneráveis.
Comprando apoios
Rene destacou a estratégia do governo em assegurar o apoio parlamentar para o projeto de privatização. Segundo ele, o governo conta com uma base sólida de 60 deputados na Assembleia Legislativa, o que, aliado ao anúncio de 14 bilhões provenientes da venda da Sabesp no orçamento de 2024, cria um cenário favorável à privatização.
Apesar disso, Vicente mencionou a criação da Frente Parlamentar em defesa da Sabesp na Assembleia Legislativa, composta por 28 deputados até o momento. Ele enfatizou a necessidade de diálogo com os parlamentares da base do governo para tentar mudar posições. A possibilidade de resistência na Assembleia, na visão de Vicente, depende da mobilização da sociedade e do diálogo com a base do governo.
Um fator de resistência ao projeto seriam prefeitos de cidades pequenas que sabem que serão prejudicados pela empresa privatizada. No entanto, Rene conta que Tarcísio tem se encontrado com prefeitos de todo o estado, oferecendo incentivos financeiros. “O governo tem prometido benefícios aos prefeitos em troca de apoio, o que pode influenciar os líderes municipais que buscam reeleição ou a eleição de seus sucessores. Uma verba adicional em ano eleitoral faz os olhos dos prefeitos brilharem”, diz ele.
A pressão da corrida eleitoral
Um dos pontos destacados por Rene é a pressão por aprovar o projeto de privatização da Sabesp antes das eleições, até o final de 2023, visando a garantir a conclusão do processo. Além do risco de haver um governo progressista e antiprivatista no governo da capital paulista, ele explicou que a movimentação política poderia diminuir o entusiasmo pelo projeto de privatização, tanto do mercado quanto do eleitorado. “São Paulo representa o maior contrato da Sabesp, e a capital paulista contribui significativamente para a receita da empresa”, informou.
A Sabesp arrecadou cerca de 3,2 bilhões de reais em lucro em 2022, de acordo com Rene, e mais de 46% desses recursos provêm da cidade de São Paulo. “Além disso, se somarmos os 14 municípios circundantes da região metropolitana, chegamos a quase 60% da arrecadação total da empresa. Isso significa que São Paulo detém grande influência sobre a Sabesp e sua capacidade de fornecer serviços de saneamento a milhões de cidadãos”, complementou.
Ele destacou que, cerca de 60% dos municípios atendidos pela Sabesp possuem menos de 20 mil habitantes, o que equivale a aproximadamente 20% da população total atendida. Isso coloca um grande número de pessoas em situação vulnerável, e os prefeitos desses municípios temem a perda desse subsídio cruzado para ter acesso a serviços de saneamento. Tarcísio procura beneficiar estes opositores do projeto para que enfrentem a próxima eleição em condições confortáveis.
Rene também mencionou as 450 mil famílias da região metropolitana que dependem da tarifa social da Sabesp, que fornece benefícios para famílias em situação de extrema pobreza. Este é outro elemento que uma prefeitura progressista oporia ao projeto de privatização.
Assim, o subsídio cruzado e a tarifa social são apenas alguns dos temas que precisam ser antecipados na corrida eleitoral e cuidadosamente considerados à medida que o debate sobre a privatização da água e saneamento continua em São Paulo.
Resistência popular
O governo está tentando aprovar o projeto de forma acelerada e sem um tempo suficiente para discussão com a população. Essa iniciativa é vista como impopular, e a oposição argumenta que, dada a magnitude do impacto, a privatização deveria ser discutida mais detalhadamente. Além disso, afirmam que o envio do projeto de lei é uma manobra inconstitucional, já que o saneamento básico requer uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC).
Rene enfatizou que a resistência à privatização da Sabesp é multifacetada. Além dos esforços na Assembleia Legislativa, Rene mencionou a judicialização como uma das estratégias mais viáveis. Ele explicou que questionar a constitucionalidade do projeto de lei, que busca a privatização em vez de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), é uma abordagem válida.
Além disso, entidades estão buscando mover ações judiciais contra passivos ambientais da Sabesp, como a poluição da represa Billings. Rene também destacou que a luta contra a privatização envolve a preservação de áreas de mananciais e reservas ambientais, cujo destino sob a gestão privada poderia ser diferente. “O Estado está abrindo mão de tudo isso, não só do controle do monopólio da água, mas também de reservas ambientais, de terrenos que poderiam ter uma utilidade pública, e que vai ser passado para a iniciativa privada.”
O sindicalista também alertou para a especulação imobiliária, indicando que áreas de mananciais e terrenos da Sabesp poderiam ser repassados para a iniciativa privada, comprometendo ativos públicos.
Paralisações e plebiscito
Sobre a greve e paralisação recentes, Vicente considerou esses eventos cruciais para chamar a atenção da população sobre a privatização. Ele destacou que a greve uniu diversas categorias afetadas pelas políticas do governo estadual, incluindo trabalhadores da Sabesp, CPTM e Metrô. A paralisação forçou o governo a abordar publicamente a questão, embora, na visão dele, o governo tenha minimizado a urgência do processo de privatização.
Ele foi otimista ao mencionar que o plebiscito sobre a privatização da Sabesp foi adiado por mais um mês, sendo bem recebido pela população. “O plebiscito permite um diálogo mais aprofundado sobre a importância dos serviços públicos essenciais e da água como um recurso público crítico”.
Rene fornece informações perspectiva importante sobre a resistência à privatização da Sabesp em São Paulo, bem como as táticas e estratégias que os opositores estão empregando para proteger o acesso à água e preservar o interesse público em meio a esse controverso processo de privatização. O debate em torno da Sabesp e de outros serviços públicos essenciais continuará a moldar o cenário político no estado nas próximas semanas e meses.
(por Cezar Xavier)