Conflito no Oriente Médio aprofunda crise diplomática e paralisia na ONU
O conflito no Oriente Médio entre Israel e o grupo Hamas continua a desafiar os esforços de resolução internacional, à medida que as tensões crescem e a crise humanitária se aprofunda. O Conselho de Segurança das Nações Unidas, encarregado de buscar soluções para conflitos globais, enfrenta um impasse significativo em relação a este conflito, tornando-se um microcosmo das complexas relações internacionais no Oriente Médio.
Em entrevista, o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Augusto Leal Rinaldi, também acredita neste “espelhamento” da geopolítica atual. O cientista político é autor de “O Brics nas Relações Internacionais Contemporâneas: Alinhamento Estratégico e Balanceamento de Poder Global (Appris, 2021).
Para ele, a ONU não consegue avançar com propostas claras de resolução de crises, como a da Palestina, porque “o modo como ela foi desenhada cria espaço para um espelhamento das relações de poder que ocorrem nas relações internacionais”. Em sua opinião, a ONU é instrumentalizada pelas grandes potências para atingir seus interesses nacionais, especialmente no Conselho de Segurança.
“O poder de veto dos membros permanentes serve como um dispositivo legal para salvaguardar/proteger os interesses dos principais atores do sistema. O problema é que quando não há convergência de interesses, há uma situação de paralisia, comprometendo com isso a capacidade da organização funcionar para enfrentar os problemas para os quais ela foi criada nos anos 1940”, analisa ele.
A analista internacional Flávia Loss, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) também aponta que, desde a Guerra Fria, o poder de veto do P5 (os cinco países membros, desde 1945: EUA, Rússia, China, Reino Unido e França) se tornou um agente paralisante. Desde o fim da União Soviética, no entanto, as divergências entre essas nações-membro só se aprofundaram.
“Isso se acirrou muito, agora, com a questão da Rússia, que até recentemente era um aliado do Ocidente, um grande fornecedor de energia para a União Europeia e, de repente, de novo se torna um antagonista do Ocidente, colocando ambos em rota de colisão. Além disso, a gente tem a China, uma potência emergente em choque com o Ocidente em várias frentes, seja na econômica, como nas normas internacionais, a China desafia o sistema vigente”, afirmou a analista.
As últimas tentativas de resolução, incluindo a proposta apresentada pelo Brasil, que atualmente preside o Conselho, foram vetadas pelos Estados Unidos, que consideram Israel um importante aliado na região. A resolução do Brasil buscava uma “condenação inequívoca” dos ataques do inimigo contra Israel, a libertação imediata de reféns civis, a revogação da ordem israelense para que civis e funcionários da ONU se deslocassem para o sul de Gaza e pausas humanitárias para permitir o acesso à ajuda durante o conflito. No entanto, os Estados Unidos alegaram que o texto não reconhecia o direito de Israel à autodefesa.
Este impasse expõe a profunda divisão e dificuldade de as principais potências chegarem a um consenso capaz de pôr fim aos ataques no Oriente Médio. A Rússia acusou os Estados Unidos de terem interesse direto na continuação do conflito, ampliando ainda mais as tensões entre as nações. A Rússia ainda critica o fato dos EUA fazerem exigências no conflito com a Ucrânia, que não servem para Israel.
Especialistas apontam que, nas próximas reuniões do Conselho de Segurança da ONU, a Rússia provavelmente continuará insistindo na necessidade de um cessar-fogo na região, na criação de corredores humanitários e na busca de negociações diretas entre as partes envolvidas. No entanto, o poder de veto, uma característica do Conselho de Segurança, continua a impedir decisões urgentes.
A diplomacia brasileira, ao liderar o Conselho temporariamente, buscou propor soluções consistentes para favorecer a pacificação da região e garantir os direitos humanitários dos civis impactados pelo conflito. No entanto, o sistema de veto torna a tomada de decisões difícil.
Escola da Unrwa (ONU) lotada de refugiados de Gaza, antes de ser novamente evacuada por alertas de bombardeios.
Do consenso para a maioria
Esses acontecimentos refletem as crescentes críticas ao papel do Conselho de Segurança da ONU na resolução de conflitos internacionais. Muitos acreditam que o órgão, criado em 1945, não está adequado aos desafios atuais e deve ser reformado para refletir a realidade geopolítica contemporânea. Isso incluiria a consideração de novos membros permanentes, como o Brasil, e uma reavaliação do sistema de veto.
O professor Rinaldi defende que uma das reformas importantes para mudar esse quadro de paralisia na ONU seria justamente alterar o modo como essas resoluções emergenciais são aprovadas. Para ele, o ideal seria uma reforma do Conselho de Segurança derrubando o poder de veto dos países-membros, o que, para ele, é praticamente impossível.
“Uma solução alternativa seria atribuir maior poder decisório vinculativo à Assembleia Geral, cujas decisões dependem da formação de uma maioria, e não de consenso como acontece com o Conselho.
Outro caminho seria a formação de comitês específicos com países selecionados para tentar aprovar resoluções/recomendações para crises específicas, de modo que nem todas as questões de segurança internacional passem, necessariamente, pelo Conselho”, diz ele, admitindo que todas essas alternativas são de difícil implementação.
A professora Flávia observa que a reivindicação por reformas é antiga. Desde 1945, quando a ONU se forma, alguns países já tinham essa reivindicação de uma reforma no Conselho de Segurança. O Brasil, diz ela, sempre quis que houvesse uma mudança para englobar mais países, com mais diversidade geográfica. “A partir do século XXI, com a emergência de novos atores, de novas potências, como a Índia, o próprio Brasil, os BRICS, essa reivindicação ficou mais forte, mas sempre barrada”, explicou.
Em meio a essa crise diplomática, as críticas feitas por António Guterres, presidente da ONU, a Israel por suas ações em Gaza geraram uma forte reação do ministro de Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen. Israel suspendeu os vistos de funcionários da ONU em resposta às declarações de Guterres, que destacou o contexto de décadas de ocupação palestina por Israel como um fator contribuinte para o conflito.
“A gente não está conseguindo fazer com que a ONU sirva para o que ela foi proposta”, diz Flávia. Mas ela gosta de lembrar sempre a frase do segundo secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjöld (1953-1961), que dizia que a ONU não foi criada para levar a humanidade ao paraíso, mas para salvá-la do inferno. “A gente precisava enxergar o que a ONU consegue fazer fora do Conselho de Segurança. Ela consegue um breve cessar-fogo e chega com ajuda humanitária em lugares que ninguém quer estar. 35 funcionários da ONU morreram dentro da faixa de Gaza. Sem ela, seria ainda pior”, afirmou.
As reformas que a cientista política imagina, não só no Conselho, mas em todo o sistema de decisão, precisa de mais diversidade, com os países do Sul Global representados. “A gente precisa principalmente, que os países se comprometam a respeitar a carta da ONU e o direito internacional”, completou.
Essa escalada de tensões e a dificuldade de chegar a um consenso internacional demonstram a complexidade do cenário global. O sistema de vetos e as rivalidades entre as potências continuam a paralisar a ONU, tornando-a cada vez mais ineficaz e irrelevante na resolução de conflitos internacionais. Nesse contexto, a deterioração das relações internacionais e a ascensão de novos atores, como a China, contribuem para a incerteza e a instabilidade no cenário global.
Quem também falou, de forma lacônica e objetiva, foi o professor Reginaldo Nasser, livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC-SP. Ele parece admitir a dificuldade da ONU agir neste momento crucial, devido ao poder de veto, e não vê muita chance de mudanças no curto prazo. “O funcionamento da ONU é assim mesmo. Está previsto o direito de veto. Não há o que fazer”, declarou.