Condições desumanas nas prisões devem ser combatidas com desencarceramento
Práticas de tortura, espancamentos, ingestão forçada de detergente, ameaças, estupros e falta de assistência médica e psicológica. Esse é o retrato cruel de parte do sistema prisional de Minas Gerais, e São Paulo, como também de outros estados, conforme revelado em relatórios de investigações conduzidas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), um órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, André Carneiro Leão, apontou suas preocupações e também as medidas que se defende para alterar essa situação do sistema prisional brasileiro, como para a redução da população penal. Segundo ele, o MNPCT tem identificado repetidas cenas de tortura e degradação, destacando que o Supremo Tribunal Federal já declarou o sistema prisional brasileiro como “um estado de coisas inconstitucional”. Isso indica que o sistema prisional viola sistematicamente os direitos humanos, contrariando a Constituição do país.
“A ADPF 347 já foi julgada e determinou medidas cautelares para serem adotadas, que infelizmente não têm sido cumpridas, mesmo neste ano”, acrescentou, citando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), com julgamento concluído no último dia 4 de outubro.
Peritos do MNPCT realizaram vistorias surpresa no sistema prisional durante o mês de outubro, revelando uma série de violações aos direitos humanos nas prisões. Os resultados da investigação em São Paulo foram apresentados na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) na última sexta-feira, com o relatório completo a ser publicado em dois ou três meses. O relatório preliminar de Minas Gerais foi divulgado pela imprensa.
No início do mês, o MNPCT já havia classificado o sistema prisional de Santa Catarina como um cenário de “sistemática violação de direitos das pessoas privadas de liberdade” e pediu a desativação do Complexo Prisional de Florianópolis, o maior do Estado. O pedido se deve ao fato do local ser patrimônio tombado e não poder passar por reformas de adequação em acordo com as diretrizes nacionais e internacionais sobre a arquitetura prisional. Novamente, aparecem denúncias de tortura, falta de alimentação e condições insalubres, além de desrespeito e discriminação em relação a população LGBTI+.
O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos enfatizou que a situação do sistema prisional no Brasil é grave, com um crescimento constante no número de pessoas encarceradas. Enquanto outros países com altas taxas de encarceramento, como Estados Unidos, China e Rússia, têm adotado políticas de desencarceramento nos últimos anos, o Brasil se destaca por continuar em uma tendência de crescimento.
Segundo André, no sistema de justiça e nos órgãos de controle, estão todos preocupados com a situação de encarceramento que não para de crescer. “Os dados não mentem”, enfatiza ele. Embora tenha havido um período de estabilidade do crescimento na pandemia, no longo prazo, especialmente desde a década de 1990, o cenário é inequívoco. “Há um boom no crescimento do encarceramento no país. O Brasil passa inclusive a se colocar na posição de terceira maior população prisional do mundo”, afirma.
Fonte: Senappen, exclui pessoas em prisão domiciliar.
A preocupante realidade da lotação do sistema penitenciário parece ser independente da orientação política do governo. “Infelizmente, é uma política que atravessou os diversos governos. Você não consegue perceber uma diminuição, por exemplo, em governos progressistas ou em governos de extrema-direita. O que foi possível perceber nos últimos quatro anos é que, para além de se estimular o discurso de que é necessário prender e prender mais, houve também uma despreocupação e uma desregulação dos sistemas de proteção dos direitos das pessoas em situação de privação de liberdade”, explicou.
O conselheiro conta que a resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) sobre a arquitetura penal, que buscava dar um mínimo de dignidade para as pessoas que estão presas, nos últimos quatro anos foi sendo paulatinamente desregulada. “Isso ampliou as possibilidades de prisões superlotadas, em que, no mesmo espaço onde cabiam três pessoas, estão colocando 15 pessoas. Então, o que é possível perceber, é que há um discurso de não preocupação com o sistema prisional”.
André argumentou que esse cenário contraditório contribui para desafios crescentes na segurança pública, uma vez que o abandono do sistema prisional estimula a criminalidade organizada, que se fortalece dentro das prisões. “Isso estimula uma situação degradante atrás das grades e isso repercute diretamente na sociedade, uma vez que as pessoas que passam por essas condições precárias saem das prisões mais revoltadas e organizadas”, explica.
Em SC, presídio com arquitetura inadequada deve ser desativado
SP: violência e negligência médica
Entre as principais descobertas denunciadas em SP estão as péssimas condições de alimentação e a negligência médica flagrante em algumas penitenciárias paulistas. Na Penitenciária Venceslau 2, em Presidente Venceslau, foi identificado um fornecimento de alimentação insuficiente. Os peritos também encontraram casos chocantes de negligência médica: um detento com pé gangrenado na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, e outro com uma infecção grave nos dedos do pé na Penitenciária Adriano Aparecido de Pieri, em Dracena.
Mesmo nas unidades prisionais com presença de médicos, os detentos não estavam sendo atendidos adequadamente. Quando havia atendimento, ele era frequentemente desumano, com os médicos atendendo os presos de fora das celas, sem sequer tocá-los.
As condições de alimentação nas prisões também são alarmantes. Na Penitenciária Maurício Henrique Guimarães Pereira (Venceslau 2), apenas R$ 8 eram gastos para fornecer três refeições diárias aos detentos, resultando em refeições de pequena quantidade e baixa variedade nutricional. De acordo com Lemos, “não tem como fazer três refeições nutritivas com R$ 8 para o dia inteiro”. A falta de nutrição adequada deixava os detentos extremamente desnutridos.
Além disso, o sistema de licitação para compra de alimentos aos presidiários foi identificado como problemático. Cada unidade prisional era responsável por sua própria licitação, resultando em custos mais altos e má gestão dos recursos.
As condições de higiene e estrutura também foram alarmantes, com celas sem chuveiros, paredes mofadas, ventanas tapadas e falta de locais dignos para dormir. As enfermarias estavam em estado de abandono.
O presidente do CNDH explicou que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura atua como um órgão autônomo, e desempenha um papel fundamental na identificação e documentação dessas violações de direitos humanos. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos frequentemente colabora com o MNPCT para lidar com questões relacionadas ao sistema prisional.
Ele destacou a importância de levar a sério os relatórios do Mecanismo, que são elaborados por peritos independentes com expertise em inspeções de presídios. Esses relatórios oferecem um diagnóstico abrangente da situação prisional no país e incluem recomendações que devem orientar políticas públicas em nível nacional e estadual.
MG: abusos e superlotação
Em Minas Gerais, as inspeções realizadas nas unidades Presídio Professor Jacy de Assis e Penitenciária Professor Pimenta da Veiga, ambas em Uberlândia, no Triângulo, desvendaram um cenário chocante. Detentos relataram práticas de tortura, agressões, ameaças e até mesmo estupros. A superlotação é um problema crônico, com as prisões abrigando 20.693 detentos a mais do que a capacidade oficial, tornando essas instituições verdadeiros “barris de pólvora”.
Um testemunho chocante de uma detenta, cuja identidade foi preservada, revelou que ela foi vítima de agressões dentro do presídio e só conseguiu assistência médica após relatar o caso em uma audiência de custódia. “Foram três dias de agressão, sem dormir e sem comer, fora a tremedeira que até hoje não passou”, descreveu a detenta, cujas agressões foram motivadas por uma suspeita de que ela teria falado sobre outras detentas.
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) de Minas Gerais afirma que mantém um compromisso com as condições de custódia e ressocialização dos detentos e considera inadmissível qualquer conduta que não reflita os valores da instituição. No entanto, os relatos do MNPCT apontam para uma realidade muito diferente.
“Não há que inventar a roda“
André Carneiro Leão enfatizou a necessidade de uma ação integrada entre o governo federal e os governos estaduais, envolvendo o sistema de justiça, as polícias de segurança pública e o poder executivo na reformulação de sua política criminal.
Para ele, não haverá solução que seja realizada apenas por Secretarias de Segurança Públicas estaduais. “É necessário que exista uma atuação de forma integrada entre governo federal e governos estaduais para tratar do sistema prisional. Porque existe todo um “ecossistema” que funciona para ampliar esse processo de encarceramento”, diz ele.
O que ele chama de “ecossistema” são medidas que perpassam o sistema de justiça, como o Ministério Público, o Poder Judiciário, as Defensorias Públicas, o sistema das Polícias de Segurança Pública (Polícia Civil, Polícia Militar, Polícia Penal), e também pelo Poder Executivo na reformulação de sua política criminal. “Se não houver essa atuação integrada, não há solução possível, porque é um problema estrutural gravíssimo e não há que inventar a roda. O Supremo Tribunal Federal na ADPF 347 já deu indicativos do que é necessário se fazer para reduzir esse encarceramento”, enfatizou.
Tais planos citados no julgamento da ADPF 347 devem tratar dos três problemas principais do sistema, a saber: (1) vagas insuficientes e de má qualidade, (2) entrada excessiva de presos (em casos em que a prisão não é necessária) e (3) saída atrasada de presos (com cumprimento da pena por tempo maior do que a condenação). Os planos deverão ser aprovados pelo STF e terão sua execução monitorada pelo CNJ, também com a supervisão do STF.
Outras medidas determinadas pelo STF foram: (1) a realização de audiências de custódia no prazo de 24hs da prisão, devendo-se levar o preso preferencialmente à presença do juiz, para que se verifique a necessidade e legalidade da prisão; (2) a separação de presos provisórios daqueles que já possuem condenação definitiva; (3) a realização de estudos e a regulamentação, pelo CNJ, da criação de varas de execução penal, em quantidade proporcional ao número de varas criminais e à população carcerária de cada unidade da federação.
Por fim, o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos reiterou que é essencial uma atuação cooperativa e integrada entre diferentes ministérios e entre o governo federal e os Estados para enfrentar o problema estrutural do sistema prisional no Brasil. O desafio persistente exige uma abordagem baseada em evidências e cientificamente fundamentada, em vez de políticas populistas que só aumentam o encarceramento.
“O que se tem visto são discursos, muitas vezes populistas, amplamente desagregados das evidências, daqueles estudos científicos que existem sobre o sistema prisional e sem nenhuma base científica. Por isso, [governos] fazem políticas individualizadas que só ampliam o encarceramento”, diz.
André Carneiro Leão destaca a urgente necessidade de reformas e ações coordenadas para abordar as graves violações de direitos humanos no sistema prisional brasileiro e fornecer condições dignas para as pessoas em situação de privação de liberdade. Este tema está ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, mas o Ministério dos Direitos Humanos, desenvolve o Sistema de Proteção e Prevenção e Combate à Tortura, que está vinculado ao Ministério da Cidadania.
O ministro Silvio Almeida tem realizado visitas, naqueles casos que foram objeto de decisão da Corte Interamericana condenando o Brasil por violações de direitos humanos no sistema prisional. “Mas é necessário que haja uma interlocução e ação integrada interministerial. O Ministério da Saúde, por exemplo, pode atuar contra a situação gravíssima da saúde nas prisões, com problemas relacionados com desnutrição. Enfim, existe a necessidade de uma ação integrada, interministerial, mas também interfederativa”, defendeu.
Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, houve um debate sobre a prevenção e combate à tortura no sistema prisional. O evento contou com a presença de representantes de entidades que atuam na área, ex-detentos, familiares de presos e membros do Ministério Público Estadual.
Uma das principais propostas discutidas foi a criação de um órgão estadual semelhante ao MNPCT, com o objetivo de realizar inspeções independentes em estabelecimentos de privação de liberdade, garantindo que as condições nas prisões atendam aos padrões mínimos de dignidade humana e respeito aos direitos fundamentais.
A luta por reformas e melhorias no sistema prisional se faz necessária para garantir que os direitos humanos sejam respeitados, que os detentos recebam tratamento adequado e que as condições nas prisões sejam condizentes com padrões civilizados. A criação de um órgão estadual de prevenção e combate à tortura é uma iniciativa importante que poderia contribuir significativamente para a transformação do sistema prisional paulista.
(por Cezar Xavier)