Após um primeiro turno alentador – que mostrou a resiliência do peronismo frente à ameaça fascista –, a Argentina se prepara para o turno final das eleições presidenciais, marcado para 19 de novembro. O recado inicial das urnas, na votação de domingo passado (22), surpreendeu ao contrariar a maioria das pesquisas eleitorais.

O atual ministro da Economia, Sergio Massa, da coligação União pela Pátria, saiu à frente da disputa, com 9,6 milhões de votos totais (o equivalente a 36,68% dos votos válidos). Já o ultradireitista e autoproclamado “anarcocapitalista” Javier Milei, da chapa A Liberdade Avança, teve 7,8 milhões de votos (29,98%).

Apenas uma pesquisa às vésperas do primeiro turno previa a liderança de Massa – e, no entanto, a vantagem aberta pelo presidenciável peronista sobre Milei foi de 1,7 milhão de votos. Dentro e fora da Argentina, diversos veículos da grande mídia classificaram o resultado como a “vitória do medo”. Milei, o “Bolsonaro argentino”, abusou das promessas reacionárias e antipopulares – algumas até primárias –, afastando o apoio de eleitores críticos ao governo Alberto Fernández.

A estagnação de Milei não foi a única surpresa. A direita tradicional – que já havia sofrido uma derrota amarga em 2019 – encolheu ainda mais, passando, em quatro anos, de 40,28% para 23,8% dos votos. Ainda assim, 6,2 milhões de argentinos escolheram Patricia Bullrich, a candidata da coligação Juntos pela Mudança, apoiada pelo ex-presidente ultraliberal Mauricio Macri.

Nesta quarta, tanto o criador, Macri, quanto a criatura, Patricia, declararam apoio a Milei. Analistas, porém, ponderam que a transferência dos votos segue em disputa. A própria chapa rachou – os demais partidos da Juntos pela Mudança optaram pela neutralidade. Embora a adesão de Patricia a Milei já fosse aguardada, o anúncio oficial recebeu não poucas críticas. O candidato ultradireitista concordou em pedir desculpas publicamente à nova aliada, contra quem fez acusações caluniosas no primeiro turno.

Empate técnico

Em meio à divisão na direita, saiu a primeira pesquisa para o segundo turno. Conforme levantamento da CB Consultoria, divulgado nesta quarta pelo jornal Clarín, os dois presidenciáveis estão empatados: Milei aparece com 41,6%, e Massa, com 40,4%. “Temos um cenário de extrema paridade com possibilidade para ambos. Há um empate técnico”, diz Cristian Buttié, diretor da CB Consultoria. A margem de erro é de 2,4 pontos percentuais, para mais ou para menos.

A pesquisa indica que, embora a maioria dos eleitores de Patricia Bullrich se inclinem para Milei, há 11,8% que se dizem indecisos e 27,5% que falam em anular o voto, votar em branco ou não votar. “Será importante ver principalmente o que vão fazer esses 11% que estão indecisos”, frisa Buttié. A seu ver, cabe ao peronista fazer “ofertas concretas para essa parte da coalizão que tem Milei como limite”.

O desafio de Milei é abrandar o discurso para atrair a confiança e o voto de mais eleitores – mas não abrandar tanto, a ponto de perder parte de sua base radical. Suas propostas mais exóticas e invariavelmente absurdas (como dolarizar a economia, acabar com o Banco Central, sair do Mercosul e liberar a venda de órgãos humanos) ajudaram-no a fidelizar seguidores, mas impuseram um teto eleitoral. Entre as primárias, em agosto, e o primeiro turno, neste mês, o presidenciável da extrema-direita desidratou.

No segundo turno, Milei vai tentar (ainda mais) colar a candidatura Massa à crise argentina. Num país onde a inflação anual deve chegar a mais de 200% e a pobreza atinge 40% da população, a tendência de vitória de um oposicionista poderia parecer natural. Não é mais. Ex-favorito, desses que chegam a vislumbrar uma vitória em primeiro turno, agora Milei precisa provar por que é uma alternativa melhor. Dizer que vai refundar a Argentina com uma série de factoides não basta. Tampouco criticar o papa Francisco agrega votos.

Não ao fascismo

Massa, por sua vez, recorrerá a outra estratégia para livrar a Argentina do fascismo. A campanha se inspira nas eleições brasileiras de 2022, na qual uma frente ampla e democrática em torno da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) impediu a reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Em seu primeiro discurso após a votação de domingo, o peronista se comprometeu a liderar “um governo de unidade nacional” e resgatar o orgulho argentino: “Esse não é um país de merda, como se têm dito – mas um grande país”, declarou, citando um dos impropérios de Milei.

Além de atrair eleitores de Patricia Bullrich que não engolem uma saída extremista, é preciso herdar a maioria dos votos do quarto colocado no primeiro turno, o peronista (e dissidente) Juan Schiaretti (6,8%), e da quinta colocada, a esquerdista Myriam Bregman (2,7%). Outra missão, mais difícil, é convocar os eleitores que não foram às urnas no último domingo – a abstenção, de 25%, foi uma das maiores na história do país.

Não será fácil conciliar a defesa de seu desempenho como ministro, uma plataforma para enfrentar a crise econômica e um apelo à mobilização antifascista. Se depender de Otavio Antunes e Raul Rabelo, marqueteiros brasileiros que integram sua campanha, a pauta democrática será prioritária. Eles sustentam que responder à pergunta “que Argentina queremos?” será o eixo da candidatura no segundo turno.

Nesta semana, a deputada Victoria Villarruel, vice de Milei, facilitou o trabalho de Massa, ao defender a revisão das indenizações às vítimas da ditadura militar (1976-1983). Em nenhum país da América do Sul a rejeição a regimes autoritários é maior do que na Argentina. A margem para a polarização está dada.