Erdogan e Putin também conversaram sobre "comércio desdolarizado" | Foto: AFP

Os presidentes Vladimir Putin e Recep Erdogan discutiram em Sochi, na Rússia, na segunda-feira (4), medidas de aprofundamento das relações, que vão da criação de um centro conjunto de distribuição e comércio de gás até o uso das moedas locais no intercâmbio econômico, mais possíveis passos para a volta do Acordo de Grãos e visões sobre o fim do conflito na Ucrânia, assim como na Síria.

Nos últimos anos, particularmente após a tentativa de golpe em 2016 (e, diz-se, de assassinato) contra Erdogan, em que houve nítidas pegadas de açulamento pelos EUA, a Turquia e a Rússia – uma, parte da Otan e a outra seu principal alvo – desenvolveram relações de intercâmbio e cooperação, cuja expressão mais óbvia foi o fornecimento, por Moscou, do sistema antiaéreo S-400 à Turquia. Neste caso a Turquia manteve o pedido de compra apesar da contrariedade de Washington. Mesmo em áreas onde as políticas de cada lado não eram exatamente próximas – como na Síria, Líbia e Cáucaso -, Moscou e Ancara avançaram para adotar uma atitude de busca das convergências possíveis.

Como registrou o portal Sputnik, que cita o conhecido especialista em relações internacionais Gilbert Doctorow, “foi muito importante que as partes tivessem esta primeira reunião pessoal desde a reeleição de Erdogan”. “A chegada de Erdogan com uma delegação empresarial e a conversa sobre a continuação de grandes projetos, incluindo o centro de gás e um segundo reator nuclear, são por si só importantes.”

Para o cientista político russo Dmitry Evstafieve, a reunião de Sochi demonstrou claramente que a Rússia é “um ator global construtivo” e que as relações Rússia-Turquia seguem “no mais alto nível político”.

DISTRIBUIÇÃO E COMÉRCIO DE GÁS 

Uma das questões centrais da reunião Putin-Erdogan foi o avanço das negociações para a criação de um centro de gás russo-turco, que irá potencializar a utilização do gasoduto Turkstream. Projeto que é da maior importância para a Turquia e que, para a Europa, é urgente, dado que o corredor ucraniano de transporte de gás pode estar vivendo seus últimos meses, como ameaça o regime de Kiev, e os gasodutos Nord Stream foram destruídos por uma operação encoberta no Mar Báltico, atribuída pelo respeitado jornalista norte-americano Seymour Hersh ao governo Biden.

“Um centro de gás russo na Turquia aumentaria o papel de Ancara e o prestígio de Erdogan. As repercussões econômicas e financeiras seriam uma grande ajuda para a economia europeia, em particular para a alemã e italiana”, disse à Sputnik Tiberio Graziani, presidente da consultoria Vision & Global Trends – International.

Ali Demirdas, analista político e colaborador da revista norte-americana The National Interest, partilha a posição de Graziani em relação à importância do centro para os europeus: “A Europa, especialmente a Alemanha, está morrendo de vontade de ter acesso a gás barato, especialmente depois da sabotagem no Nord Stream”, disse ele. “As repercussões disto são tão grandes que, como a Alemanha perdeu gás russo barato, a sua economia e a União Europeia em geral mergulharam numa recessão”.

“Nas nossas conversações com Putin, discutimos o setor energético sob várias perspectivas”, afirmou Erdogan, registrando que o centro de gás garantiria o fornecimento de energia russa ao mercado global e ajudaria a controlar os preços do gás. Para isso, ele anunciou, Ancara já está estabelecendo as infraestruturas e instalações necessárias e planeja agora criar um centro financeiro dedicado à exportação de gás natural.

“Temos planos para criar um centro para financiar projetos relacionados com o fornecimento de gás natural, seguindo o exemplo de centros semelhantes que existem em Londres e Hamburgo… Planejamos criar tal centro não só para gás natural, mas também para [outros tipos de] energia e o setor mineiro”, afirmou Erdogan.

A proposta, que partira de Putin, de um centro de distribuição de gás russo baseado na Turquia, acoplado a uma bolsa de negociação eletrônica, visa, ao estabelecer um local de determinação do preço final do gás para os consumidores europeus fora do controle dos especuladores baseados em Washington e Londres, evitar a “politização” do fornecimento de energia.

De acordo com Erdogan, o centro russo-turco permitirá exportar 40 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano a partir de 2024. Segundo ele, o centro terá um impacto positivo nos custos globais de energia, ajudará a garantir o abastecimento interno de gás da Turquia e, eventualmente, transformará o país num novo “centro energético global”.

Outro sinal do avanço das relações russo-turcas foi a discussão sobre uma segunda usina nuclear, projetada e fornecida pela estatal russa Rosatom, a ser erguida em Sinop, no Mar Negro. “Discutimos a construção de uma segunda central nuclear com o meu querido amigo [Putin]. Com este passo, a Turquia irá, sem dúvida, abrir novos caminhos”, disse Erdogan.

A primeira usina nuclear da Turquia está em construção em Akkuyu, na província de Mersin, compreendendo quatro reatores russos de 1.200 MW, que deverá gerar 10% da eletricidade do país quando concluído, sob um acordo assinado em 2010. O projeto, financiamento e operação e da estatal russa de energia nuclear Rosatom, com o lado turco tendo a opção de adquirir 49% do controle.

Os trabalhos no local tiveram início em 2015. A construção da primeira unidade de Akkuyu começou em março de 2018. A construção da segunda unidade começou em 2020. Em abril de 2023 – no centenário da fundação da Turquia moderna – foi realizada, em uma cerimônia solene, a entrega do primeiro lote de combustível nuclear para a usina nuclear de Akkuyu.

DESDOLARIZAÇÃO

Após a reunião de Sochi, o presidente Putin anunciou que a Rússia e a Turquia estavam abandonando a utilização de dólares e euros nos seus acordos bilaterais. Decisão que converge para o consenso obtido na 15ª Cúpula dos BRICS, de mudança para moedas nacionais e sistemas de pagamentos nacionais para proteger as suas economias das sanções e do assédio financeiro de Washington.

Na cimeira, Putin e Erdogan também anunciaram que o comércio bilateral será aumentado para o equivalente a US$ 100 bilhões.

A tendência à desdolarização se acelerou no mundo inteiro após a transformação do dólar norte-americano em arma por parte de Washington, o congelamento dos ativos do Banco Central da Rússia e sanções visando, não escondiam, destruir a economia russa. ‘Se eles não respeitam uma superpotência nuclear como a Rússia, quem estará seguro ao deixar seus recursos sob domínio dos EUA?’, foi a percepção que se espraiou como uma fagulha numa pradaria ressecada.

“Neste momento há muitos países – incluindo a Turquia – que estão interessados ​​no processo de desdolarização”, disse Graziani. “O fato importante é que a maioria destes países constitui o Sul Global e são países em ascensão.”

 “ACORDO DOS GRÃOS”

Putin e Erdogan também debateram os parâmetros para uma possível restauração do “Acordo dos Grãos”, cujo aspecto central é que os EUA e países subalternos têm de cumprir sua parte no que havia sido acertado anteriormente – permitindo o estabelecimento de um acordo – e foi sabotado, forçando a retirada da Rússia em 17 de julho. A parte da Rússia, essa sempre foi cumprida: a garantia de um corredor seguro para o transporte de grãos no Mar Negro, no quadro do conflito.

Os dois lados chegaram a um acordo limitado de curto prazo para que a Rússia enviasse um milhão de toneladas de cereais à Turquia para processamento e exportação para nações mais pobres, que será entregue gratuitamente, como Putin se comprometeu na cúpula Rússia-África.

Durante a conferência de imprensa, Putin afirmou: “A Rússia estará pronta para reavivar o acordo de cereais e fá-lo-á imediatamente quando todas as disposições nele estabelecidas sobre o levantamento das restrições as exportações agrícolas russas forem cumpridas”.

Crucial para isso é ter o Banco Agrícola Russo (Rosselkhozbank) reconectado ao sistema de pagamentos global SWIFT bem como o desbloqueio de ativos congelados de empresas russas que produzem fertilizantes na Europa, segundo a agência estatal Analou. O que implicaria também a necessidade de levantamento das restrições ao seguro dos navios e ao acesso aos portos atualmente proibidos a embarcações russas.

Ainda assim, Erdogan parecia otimista ao sair das conversações, dizendo aos meios de comunicação que espera uma resolução em breve. “Como Turquia, acreditamos que alcançaremos uma solução que irá satisfazer as expectativas num curto espaço de tempo.”

GUTERRES

Para Doctorow, a bola está do lado da ONU neste momento. “[O Secretário-Geral das Nações Unidas, Antonio] Guterres está aparentemente fazendo o que pode para conseguir um acordo ocidental para restaurar o Banco Agrícola Russo, que gerencia as vendas de cereais, de volta ao SWIFT e também para resolver outras reclamações russas sobre promessas não cumpridas. Veremos em breve nos próximos dias se isso vai funcionar.”

A Rússia também tem denunciado que a parte do leão do fornecimento de grãos ucranianos foi desviada para a Europa rica, enquanto os países em desenvolvimento mais pobres apenas obtiveram uma parte minúscula das exportações alimentares da Ucrânia.

Sobre a paz na Ucrânia, Erdogan disse que ainda está distante. A Turquia, no início da guerra, quase conseguiu intermediar um acordo em Ancara em que, em troca da manutenção da neutralidade, isto é, proibição de ingresso na Otan e reconhecimento das repúblicas do Donbass e da Crimeia russas, a guerra teria acabado em março passado. O acordo foi abortado, com a ida do então primeiro-ministro inglês Boris Johnson a Kiev, com a ordem de Washington de recusa da negociação e luta “até o último ucraniano”. Zelensky até mesmo transformou em lei a proibição ditada por Biden de qualquer negociação. Em relação à Síria, Rússia e Turquia reafirmaram os compromissos de paz e soberania como acertado nos encontros de Astana.

Fonte: Papiro