Nunca vacilei em dizer que Águas de Março é a canção da minha vida, algo que continua surpreendendo quem me pergunta. A canção é agradável para uns, mas pouco compreendida por quem não consegue “sacar” sua estrutura melódica e harmonia nada convencional, além de sua poesia (quase) sem verbos de ação e métrica sem estrofes e refrões. 

Muito antes de ter uma aula com o professor Arthur Nestrovsky, no curso de Semiótica da PUC-SP, com a partitura de Águas de Março nas mãos, meu amor pela canção já era sensível e intuitivo. Minha admiração já era absoluta pelo minimalismo melódico de intervalos estreitos e poucas notas, a letra que remete à passagem do tempo, ao fluxo da natureza e seus detalhes, à capacidade de imprimir emoção em algo tão sintético e concreto como a descrição de um mês de chuvas em que tudo pode acontecer, até a solidão da morte. Texto mínimo que parece um haikai.

Sempre ouvi a música como quem lê o texto de Guimarães Rosa. Parece que fazem parte da mesma família. Sou aficcionado pela prosa sonora, inventiva e enraizada na natureza sertaneja de Rosa. Dois artistas ecologistas em sua paixão pela terra, a mata, os rios, os animais, a paisagem. A febre que sobe os rios e atravessa as matas, tomando o corpo dos personagens de Rosa, é o mesmo cansaço que toma conta do “corpo na cama” do compositor, que entra em fluxo de consciência, numa enxurrada de imagens, enquanto a chuva cai.

Apesar das pessoas acharem a música alegre, especialmente na versão com Elis Regina, em 1992, Tom declarou que escreveu a canção “em um período em que estava muito na fossa” por ouvir do médico que ia morrer de tanto beber. Edu Lobo conta que Tom ressentia-se de que “ninguém ouvia seus discos”. Helena Jobim também relata que o irmão brincava naquele período que temia encerrar a carreira “aos 80 anos, cantando ‘Garota de Ipanema’, num circo do interior e sendo vaiado”. O sucesso internacional já existia, mas a delicadeza e luminosidade da bossa nova dera lugar às canções funestas de protesto contra a ditadura. 

Pois foi por aí, que surgiu o projeto Elis e Tom, o disco que faria o encontro de dois deuses da música brasileira, que pouca intimidade tinham um com o outro. O tímido e obsessivo Tom Jobim e a nervosa e insegura Elis Regina foram se encontrar em Los Angeles, para um projeto cuja iniciativa era do cineasta Roberto de Oliveira. Ele sentia que precisava registrar as imagens deste encontro épico, que deu zebra e quase não vingou. Os mal-entendidos foram se acumulando ao ponto de Elis arrumar as malas para voltar ao Brasil antes de Oliveira chegar a L.A.  

Eu já havia acompanhado o relato de Julio Maria, em Elis Regina – Nada Será Como Antes, biografia em que as tensões do encontro já estavam amplamente relatados. Mas vendo o filme Elis e Tom – Só tinha de ser com você, tudo parece mais constrangedor e engraçado, ao mesmo tempo. Porque quando duas pessoas tensas se encontram para fazer música, tudo se resolve numa explosão de felicidade e graça. É o que está sintetizado na gravação de Águas de Março.

Roberto abandonou o projeto, sem que ninguém entendesse muito. Ele acredita que ninguém entenderia o sentido do filme se ele tivesse sido lançado na época. Agora, ele resgata as imagens numa montagem que contou com ajuda de inteligência artificial e toda a tecnologia disponível para dar vida à película e profundidade ao áudio. Assistir o filme num bom cinema faz toda a diferença e se justifica, mesmo sendo um documentário.

Os contratempos da história preenchem o documentário de dramaturgia, num suspense que culmina no sucesso que representa o álbum, considerado por críticos do mundo todo como um dos maiores de todos os tempos. Para o diretor, a saga dos dias tortuosos que renderam o álbum Elis e Tom fazem mais sentido agora, para se compreender com quantas tábuas se faz uma obra prima.

A resistência de Tom em aceitar que o arranjador seria Cesar Camargo Mariano, com seus meros 27 anos, também se revelou um desgaste desnecessário. Afinal, como o namorado de Elis ousava discutir com o homem que era mestre em arranjar os seus próprios discos e de tantos outros?

César consegue ser tão sofisticado e delicado quanto Tom na confecção dos arranjos, dando um ar de atualidade e modernidade ainda maior às canções. Afe Maria, como Tom brigou para não entrar guitarra nos arranjos! Pois a guitarra enriquece imensamente o inferno de acordes dissonantes e ritmo sincopado, fazendo a dificuldade parecer leveza e luminosidade. E quando César disse que ia usar o piano elétrico, em vez do “piano de pau”?!… Tom caiu duro com as duas pernas pra cima.

Tom devia imaginar que ia gravar mais um de seus discos, com seus arranjos de “piano de pau” e orquestra, preenchendo sucessos conhecidos na voz de mais uma cantora. Em vez disso, Elis chega de braço dado com César, querendo cantar apenas canções pouco conhecidas, algumas antigas. E até de outros compositores, veja bem…

Mas o que saiu foi o disco definitivo, que ninguém cansa de ouvir e perceber novidades a cada audição. O disco que músicos de todo o mundo precisa ouvir na escola para ter dimensão da excelência da composição, do arranjo, do canto, da interpretação, da gravação, da composição e da poesia. As harmonias complexas e infinitas dos acordes de Tom Jobim continuam espantando geração a geração de novos músicos.

Esse será o efeito deste filme. Trazer a maestria de Elis e Tom para novas gerações, que não imaginam que era possível fazer coisas assim, “antigamente”. O filme estreou em Los Angeles, seu berço, e pretexto para disputar uma vaga no Oscar. 

Pensando aqui com meus zíperes, Águas de Março foi composta no ano do meu aniversário e fala do mês quente e molhado em que nasci. Não há melhor escolha que essa para embalar o moto-perpétuo dos meus dias.

(por Cezar Xavier)