Ciência e catástrofes frequentes não permitem mais negar mudança climática
Um levantamento produzido pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) contabiliza os desalojados, desabrigados, vítimas fatais e pessoas afetadas por catástrofes ambientais e climáticas no país. Se em 2022, os dados mostram que quase oito milhões de brasileiros foram afetados por catástrofes ambientais nos primeiros três meses deste ano, 2023 ameaça fechar com dados ainda mais alarmantes.
Enquanto as secas e estiagens foram as mais recorrentes em 2022, as fortes chuvas, as enxurradas, as inundações e os alagamentos têm impressionado este ano com o nível de devastação em áreas do Nordeste, Minas Gerais, região Serra do Rio de Janeiro, litoral norte de São Paulo, Santa Catarina e, agora, Rio Grande do Sul, com cerca de 50 vidas perdidas e enormes prejuízos materiais.
Tudo isso ressalta a importância de enfrentar a crise climática e promover a conscientização sobre suas implicações, pois são um lembrete de que ações urgentes são necessárias para mitigar os impactos das mudanças climáticas e proteger nossa civilização e nosso meio ambiente. É o enfatizou o climatologista Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), em entrevista.
Negacionismo climático
Durante a conversa, o professor abordou a questão fundamental: esses eventos são parte de um ciclo natural ou indicativos de mudanças climáticas? Alexandre Costa foi enfático em sua resposta, destacando que a ciência climática já não deixa dúvidas sobre o assunto. Indo direto ao ponto, ele destacou que esses fenômenos não fazem parte de um ciclo natural do clima. Em vez disso, eles são indicativos claros de que as mudanças climáticas estão ocorrendo em ritmo acelerado.
Costa abordou o problema do negacionismo climático, enfatizando a importância de ouvir e agir com base na comunidade científica e rejeitar visões pseudocientíficas que minimizam a gravidade das mudanças climáticas. Ele destacou a necessidade de conscientização e ação global para enfrentar a crise climática.
Aqueles que negam as mudanças climáticas estão agindo de forma equivalente ao movimento antivacina e ao negacionismo da gravidade da covid-19. “Quem fizer o contrário, de boa fé ou de má fé, está promovendo um negacionismo equivalente ao movimento antivacina, o negacionismo da gravidade da covid.”
Ele explicou que os extremos climáticos, como secas, ondas de calor, eventos de chuvas intensas e furacões, estão se intensificando devido ao aquecimento global e mudanças no ciclo hidrológico. Por exemplo, uma atmosfera mais quente leva a taxas de evaporação maiores, intensificando secas e ondas de calor. Ao mesmo tempo, essa atmosfera retém mais vapor d’água, resultando em eventos extremos de precipitação.
“Nós conhecemos os mecanismos físicos. Não é uma questão de atribuir um ou outro evento isoladamente, mas é o conjunto deles. A estatística desses eventos está comprovadamente alterada em associação com o aquecimento global”, afirmou o climatologista.
Ele faz um chamado urgente para uma ação global coordenada, destacando que a crise climática é o desafio mais premente de nosso tempo e requer medidas imediatas para proteger nosso planeta e nossas futuras gerações.
Alexandre observa que, pouco antes do primeiro grande ciclone extratropical dessa temporada atingir o Sul, e provocar a tragédia que foi testemunhada, na CPI das Ongs [voltada para atingir organizações ambientais] foi convidado um negacionista climático, Luiz Carlos Baldicero Molion, atacando o que ele considerava catastrofismo. “Ele disse que as pessoas do Nordeste podiam se tranquilizar que este ano não ia ter seca e que as pessoas do Sul poderiam ficar tranquilos que não ia ter tanta chuva assim, como os cientistas estavam dizendo. Uma coisa que me causa mal estar”, relatou, mencionando um vídeo que viralizou recentemente.
Catástrofes não são um ciclo natural
Alexandre ilustra como os extremos climáticos estão sendo intensificados em ambos os espectros: secas, ondas de calor, incêndios florestais de um lado, e chuvas intensas, inundações e tempestades mais fortes de outro.
“Por exemplo, o ciclo hidrológico é alterado porque uma atmosfera mais quente, de um lado, induz taxas de evaporação maiores e isso intensifica e prolonga as secas e as ondas de calor, isso de um lado, mas do outro, essa mesma atmosfera mais quente, como ela extraiu mais vapor d’água da superfície e acumulou mais vapor d’água dentro, ela tem mais matéria-prima para produzir eventos extremos de precipitação.”
Costa apontou que as ondas de calor com um período de recorrência de 50 anos estão ocorrendo quase cinco vezes mais frequentemente do que o esperado. Isso foi observado globalmente, incluindo um inverno quente no Brasil e um verão extremo no Hemisfério Norte.
“Os dois extremos — secas ondas de calor e incêndios florestas de um lado, e no outro, ciclones tropicais e extratropicais mais intensos, chuvas mais concentradas, enxurradas, etc. do outro, ambos os extremos ficam muito intensificados.”
Nos últimos três anos, o fenômeno do La Niña se caracteriza por uma temperatura mais fria na bacia do Pacífico Equatorial. “Não é que o aquecimento global tenha freado, é que na verdade durante esse tempo o oceano estava acumulando calor em camadas mais profundas”, explica ele. “Quando passa o evento de El Niño, você não retorna depois ao resfriamento, porque isso sim seria um ciclo natural. Ficaria até mais frio do que o normal em ano de La Niñas. Mas o que acontece é que a água esquenta e fica num novo patamar. Provavelmente esse novo patamar vai ser muito próximo de 1,5°C, considerado como um limiar relativamente seguro. A tendência, hoje, é que na próxima década, a gente ultrapasse irreversivelmente a barreira de 1,5°., e, especificamente passando de 2 graus, que é um limite superior ap que foi acordado em Paris, é que esses eventos perigosos se multipliquem numa velocidade ainda maior e com uma intensidade ainda maior”.
2023: calor extremo
Quanto ao que o futuro reserva, Alexandre Costa não ofereceu boas notícias. “Há chance muito real que 2023 se confirme como o ano mais quente do registro histórico.”
Ele baseia essa afirmação não apenas nas medições modernas, mas também em informações paleoclimáticas que remontam a 125 mil anos. “E isso implica, portanto, que é quase certo que nós tenhamos que retroceder cerca de 120 a 125 mil anos para o interglacial passado, que foi um interglacial curto e intenso, pra ter temperaturas semelhantes às que nós temos hoje.”
O climatologista enfatizou que o mundo está caminhando para ultrapassar o limite de 1,5°C de aquecimento, até o final da próxima década, considerado relativamente seguro. Ele alertou que, uma vez ultrapassado esse limite, eventos climáticos perigosos se multiplicarão em velocidade e intensidade. A situação pode piorar ainda mais se medidas drásticas não forem tomadas.
O especialista destacou a urgência de tomar medidas significativas para combater as mudanças climáticas e proteger o planeta contra futuras catástrofes. “Não é uma questão de salvar o planeta para as futuras gerações; é uma questão de sobrevivência agora”, concluiu o professor da Uece.
“O cenário é Mad Max [filme distópico]. No final das contas, não dá pra achar que um vale tudo, um salve-se quem puder, uma lei do mais forte, vai produzir algum resultado bom.”
Agroecologia e questão de sobrevivência
Quando questionado sobre o que esperar para o futuro, Alexandre Costa alertou que há uma chance real de 2023 se tornar o ano mais quente do registro histórico. Ele também mencionou a necessidade de uma transição energética radical e uma transformação na agricultura, passando para modelos mais sustentáveis, como a agroecologia.
Costa explicou que o modelo atual de agropecuária, centrado na produção de alimentos de origem animal, resulta em enormes emissões de metano, um gás com potencial de aquecimento global até 28 vezes maior do que o dióxido de carbono (CO2) em um período de 100 anos. Além disso, a produção em grande escala implica em emissões de óxido nitroso, um gás 365 vezes mais potente que o CO2.
O climatologista enfatizou a necessidade de uma transição para um sistema de produção de alimentos baseado na agroecologia e na restauração de estoques de carbono no solo e na vegetação. Ele argumentou que a agropecuária atual não é sustentável e que é fundamental adotar práticas que neutralizem as emissões de gases de efeito estufa.
“Essa agropecuária precisa dar lugar a um outro sistema de produção de alimentos, precisa fazer uma transição para uma agricultura baseada nos princípios da agroecologia, da restauração de estoques de carbono no solo e na vegetação.”
Além das mudanças na agropecuária, Costa destacou a importância de uma transição energética radical, com o abandono dos combustíveis fósseis e a adoção de fontes de energia renovável. Ele enfatizou que a humanidade tem apenas cerca de 10 anos para começar a implementar essas mudanças de forma significativa e cerca de 30 a 40 anos para concluí-las.
Transformação urbana
Questionado sobre a possibilidade de minimizar os impactos nos locais afetados, Costa enfatizou a necessidade de melhores sistemas de alerta e investimentos em radares, instituições meteorológicas e na defesa civil. Ele apontou que, embora esses setores tenham feito o máximo possível, é crucial aumentar os investimentos para melhorar o sistema de prevenção e resposta a desastres naturais.
Costa expressou preocupação com o modelo atual de produção, que valoriza o lucro imediato em detrimento da preservação ambiental. Ele observou que a agricultura e a pecuária intensivas, assim como a especulação imobiliária, contribuem para a degradação ambiental. O climatologista argumentou que é necessária uma nova economia que promova a sustentabilidade e não recompense a destruição.
Além dos investimentos imediatos, o climatologista ressaltou a importância de uma política de adaptação de longo prazo e construção de resiliência. Isso inclui a necessidade de repensar o planejamento urbano, reduzindo a impermeabilização do solo e promovendo a recuperação de áreas de preservação permanente, como matas ciliares. Costa destacou que essas mudanças exigem uma nova abordagem econômica e política.
O climatologista é claro sobre a necessidade de ações imediatas para enfrentar a crise climática. Ele apela para que o Brasil zere o desmatamento, mude suas políticas agrícolas e busque uma agricultura baseada em princípios de agroecologia e restauração de carbono no solo e vegetação. Além disso, ele enfatiza a importância de uma transição energética radical, abandonando os combustíveis fósseis em favor de fontes de energia renovável.
A desigualdade
No entanto, o climatologista enfatizou que o Sul Global é mais vulnerável às mudanças climáticas e que a desigualdade desempenha um papel importante nesse contexto. Países ricos têm mais recursos para lidar com os impactos das catástrofes, enquanto as populações mais pobres e vulneráveis sofrem desproporcionalmente. Ele ressalta que essa desigualdade também é evidente dentro dos próprios países ricos, com as comunidades mais pobres sofrendo mais.
Alexandre adverte que a crise climática não é apenas uma ameaça distante, mas algo que já está afetando nossas vidas. Ele destaca que as gerações futuras estão em maior risco e que é imperativo agir agora para evitar um cenário de “catástrofe completa”. “Nós vamos entrar num quadro que só pode ser caracterizado como de catástrofe completa de trânsito climático. O planeta impossível de sustentar a civilização como a conhecemos.”
Ele enfatizou a importância de colocar a crise climática no topo da agenda global e agir com a máxima urgência. “Isso precisa ser dito com todas as letras e precisa estar no topo da agenda de tudo quanto é governo, de redução da devastação em função dessa monocultura de grãos, por exemplo.”
(por Cezar Xavier)