A carta que desmentiu a Igreja e chamuscou a biografia de Pio 12
Se o silêncio é uma prece, o silêncio da Igreja Católica sobre o holocausto é um réquiem. Não exatamente um réquiem para os 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas – mas, sim, para líderes omissos como o papa Pio 12 (1876-1958), a quem o Vaticano sempre procurou blindar.
As suspeitas de que o pontífice sabia do genocídio já eram generalizadas, mas ganharam força neste mês, graças a uma revelação que joga a Igreja contra a parede. É uma carta escrita pelo padre jesuíta Lother Koenig em 14 de dezembro de 1942, em meio à 2ª Guerra Mundial.
Horrorizado, Koenig – que integrava a resistência contra os nazistas na Alemanha – tenta alertar o papa Pio 12 sobre as atrocidades em três campos de concentração nazistas (Auschwitz, Belzec e Dachau). Segundo o padre, havia dias em que até 6 mil judeus e poloneses eram mortos nas câmaras de gás.
A correspondência foi enviada ao também padre Robert Leiber, secretário pessoal de Pio 12, mas permaneceu desconhecida por mais de 80 anos. Deve-se sua recente descoberta a Giovanni Coco, arquivista do Vaticano. Não era a primeira nem a segunda vez que a denúncia da Shoá – o assassinato em massa dos judeus – chegava ao papado. “Antes de dezembro de 1942, o Holocausto passou pelo menos dez vezes pelo Vaticano e o papa ficou calado”, lembrou o jornalista Elio Gaspari no domingo (23).
A Santa Sé jamais admitiu que Pio 12 sabia em primeira mão dos crimes humanitários do regime de Adolf Hitler. Segundo a cúpula católica, as críticas ao “silêncio da Igreja” se baseavam em especulações. A carta de Lother Koenig desmente a versão oficial e chamusca ainda mais a biografia de um papa que já foi chamado de “salvador”, por ter acolhido judeus romanos em dependências da Igreja, como templos e escolas. Às voltas com a polêmica, o papa Francisco deve manter congelada a proposta de beatificação de Pio 12.
À BBC, o escritor e pesquisador britânico John Cornwell, autor de O Papa de Hitler, condenou o epiteto de “salvador de judeus” atribuído a Pio 12. “Em toda a Europa ocupada, muitos católicos – padres, freiras e fiéis – salvaram muitos judeus. Mas acho escandaloso que o Vaticano afirme que isso aconteceu graças às instruções do papa”, declarou Cornwell. “Há muito poucas evidências que indiquem que o papa tenha pedido a seus subordinados que fizessem qualquer coisa para salvar os judeus da perseguição.”
Ele lembra a Reichskonkordat (Concorda com o Reich), um acordo firmado entre a Igreja e os nazistas para que os católicos pudessem manter suas escolas em funcionamento na Alemanha, desde que não se intrometessem em assuntos políticos. “Devido a essa negociação, os religiosos foram proibidos de fazer qualquer crítica ao Estado alemão – e os jornais católicos, que eram muitos, também desapareceram.”
Conforme escreveu William Faulkner em Réquiem por uma Freira (1950), “o passado nunca está morto. Na realidade, ele nem sequer é passado”. O cinema já abordou a omissão do trono do Vaticano em diversas produções, como Amém (2002), do diretor grego Costa Gavras. O filme é inspirado na peça alemã O Vigário (1963), de Rolf Hochhuth. A trama – do teatro ao cinema – acusa Pio 12 de ter feito um pacto com os nazistas em nome de um objetivo comum: o combate ao comunismo.
Em 1939, já à frente da Santa Sé, Pio 12 saudou a vitória do general Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola como um marco na luta contra os “prosélitos do ateísmo materialista”. Por estas e outras declarações do pontífice, o historiador David Kertzer, autor de O Papa e Mussolini, já havia sentenciado: “Como líder moral, Pio 12 deve ser considerado um fracasso”. A carta de Lother Koenig é demolidora.