Prédio do DOI-Codi pode se tornar memorial contra a ditadura
Escavações encontraram inscrições na parede, objetos e vestígios de sangue. Prédio abrigava torturas durante a ditadura militar
Arqueólogas investigam escavação no prédio do antigo Doi-Codi. Foto Divulgação Unicamp
Foram encontradas evidências históricas do período de funcionamento do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo, durante a ditadura militar (1964-1985). São vestígios de uma escavação que podem mudar o status do edifício na Rua Tutoia, no Paraíso, em São Paulo.
Foi encontrada uma inscrição na parede, material biológico que pode ser sangue e outros vestígios por um grupo de pesquisadores durante escavação que ocorreu até este sábado (12), desde o início de agosto. As evidências corroboram o relato de presos políticos que afirmam terem sido fichados na frente do prédio, onde ocorriam interrogatórios e torturas.
Uma das expectativas dos pesquisadores é a de que o material encontrado nas escavações possa fortalecer o pedido a favor da transformação do local em um memorial. Atualmente, um dos quatro prédios que formam o complexo serve de endereço para o 36º Distrito Policial de São Paulo.
Os profissionais dos laboratórios de arqueologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) avaliam que o material encontrado pode ser usado como prova em processos judiciais e ajudar a sustentar uma ação pedindo que o antigo centro de repressão se torne um memorial.
Estimativas avaliam que o centro de repressão da ditadura militar recebeu cerca de 7.000 pessoas detidas, entre 1969 e 1983, e que as mortes a cargo de agentes do órgão tenham sido entre 52 e 79.
O trabalho arqueológico ajuda na obtenção de vestígios materiais que podem ser usados em processos judiciais, além de fortalecer o debate sobre a importância da memória histórica acerca de contextos relacionados a passados violentos.
Memória fragmentada
Um frasco de tinta para carimbo e outros objetos (como solas de sapato, botões, vidros de colônia e papéis de bala) são vestígios que podem ajudar a explicar a dinâmica que ocorria no centro de detenção. Foram encontrados cerca de 400 objetivos.
Para os pesquisadores, as inscrições na parede do banheiro, em cima de um mictório, são a grande descoberta até o momento. Segundo os arqueólogos, os números associados a dias da semana e meses cravados na parede são referentes ao ano de 1970 ou 1981.
A marcação do tempo é um ato de resistência, pois os carcereiros buscam negar a noção de tempo e de espaço ao prisioneiro. Fazer um calendário ajuda a manter a sanidade, enquanto se está detido.
A memória dos presos políticos torturados geralmente diz respeito a estes pequenos objetos do espaço físico em que ficaram. Muitos não lembram de coisas importantes, mas de detalhes, assim, estas descobertas podem ajudar a ativar memórias mais importantes.
No Club Atlético, centro de detenção de Buenos Aires, na Argentina, o professor da UFMG Andres Zarankin e sua equipe escavaram uma bolinha de pingue-pongue que se mostrou objeto revelador do cotidiano dos repressores daquele país durante a ditadura (1976-1983).
Sobreviventes contavam que havia uma mesa de pingue-pongue na qual os repressores jogavam enquanto os presos eram torturados. Mesmo encapuzados, os presos ouviam o movimento da bolinha. Isso se transformou na representação material da experiência de estar naquele local, de acordo com o pesquisador que, agora, atua na escavação paulistana.
Paisagem urbana
O prédio escavado tem dois andares, nos quais os pesquisadores abriram cinco quadras, espaços em que fizeram a busca por vestígios. O edifício tem um banheiro em cada andar. No térreo, há três salas e um refeitório. O primeiro andar tem quatro salas menores e uma maior. O segundo tem, além do salão, três salas pequenas.
Em junho de 2021, o MP-SP (Ministério Público de São Paulo) entrou com uma ação judicial para implementar no local um memorial dedicado à reflexão sobre a ditadura.
A ação, entre o MP-SP e a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, ainda está em andamento.
O projeto do grupo de trabalho inclui também a criação de um memorial virtual com todo o material resultante da pesquisa, que é mais ampla. A pesquisa arqueológica faz parte do caminho para a criação do memorial.
A historiadora Deborah Neves, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Memorial DOI-Codi, conta que o projeto do grupo de trabalho inclui também a criação de um memorial virtual com todo o material resultante da pesquisa, que é mais ampla. A pesquisa arqueológica faz parte do caminho para a criação do memorial.
A historiadora ressalta que não existe memorial possível nem adequado se as estruturas do prédio não forem conhecidas. Ela cita o prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em São Paulo, que hoje abriga o Memorial da Resistência e que foi totalmente descaracterizado por uma reforma em 1999. “Essa pesquisa arqueológica visa também justamente isso: resguardar a materialidade do prédio para evitar que seja feito uma higienização no local como aconteceu no prédio do Dops”, lembrou.
Além da parte arqueológica, o grupo faz coleta de testemunhos, cujos vídeos estão no Memorial da Resistência, e investigação de documentos no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional. “[A previsão é que] a gente consiga, até 2025, fazer a inauguração de um memorial virtual, que reúna as informações sobre o órgão em uma única plataforma em que seja possível as pessoas fazerem um tour virtual pelo prédio e também acessar os resultados de todas as pesquisas que estão sendo feitas dentro do projeto”, disse Deborah.
Além das escavações, sondagens e raspagens de paredes que ocorreram até este sábado, o projeto ofereceu oficinas, visitas guiadas e formação de voluntários e professores. Nesta segunda (14), interessados ainda podem fazer visitas das 10h às 11h e das 15h às 16h.
Para participar, basta comparecer ao local, ou solicitar agendamento na conta do Instragram @arqueodoicodisp.
Segundo a pesquisadora da Unicamp Aline Vieira de Carvalho, a expectativa é que o projeto tenha continuidade, com nova etapa de escavações.
(por Cezar Xavier)