Houve festa nas ruas da capital do Gabão assim que a deposição do tirano foi anunciada | Vídeo

A tirania Bongo, no poder há 56 anos no Gabão, ex-colônia francesa rica em petróleo, mas assolada pela pobreza, foi deposta por um levante militar, que teve início na madrugada desta quarta-feira (30) minutos depois da proclamação da ‘vitória’ de Ali Bongo para o terceiro mandato, após apuração realizada sob toque de recolher e internet bloqueada.

A deposição foi recebida com festa nas ruas de Livreville, a capital, e Port Gentil, a capital econômica. “Centenas de pessoas saíram, buzinando ao grito de ‘Gabão está libertado’. Alguns dançam com policiais e soldados uniformizados”, relatou à AFP o jornalista independente Ousmane Manga, por telefone. O novo poder cancelou a eleição fraudada e mandou religar a internet.

Ali sucedera a seu pai, Omar Bongo, que governou o Gabão por 42 anos, até sua morte, e era considerado “um pilar” da “Françafrique”. Esta, a perpetuação do jugo colonial por outras vias, como o controle da economia pela metrópole, o uso do “franco das colônias” (CFA) como moeda, com a obrigação de manter 50% das reservas no BC francês, a presença de tropas francesas e os favores à elite colaboracionista.

Sucessivamente, ex-colônias francesas, como Mali, Burkina Faso, Guiné e Niger, têm se levantado contra essa situação, o que reflete tanto o cansaço com a espoliação e a miséria, quanto o enfraquecimento da França, sob esse quadro de submissão canina a Washington na guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia.

Nesses levantes, bandeiras russas têm surgido com frequência nas manifestações, em reconhecimento ao apoio soviético à descolonização bem como pelo papel de Moscou agora contra a iníqua ordem unipolar sob o Pentágono e Wall Street.

Entre os principais produtores na África subsaariana, o petróleo representou 38,5% do PIB do Gabão e 70,5% das exportações em 2020, segundo o Banco Mundial. A pequena nação, com 2,3 milhões de habitantes, faz fronteira com os Camarões, a República do Congo e a Guiné Equatorial. Também é um dos sítios mais ricos em manganês.

Por causa da exportação de petróleo e da pequena população, seu PIB per capital é um dos maiores do continente africano, mas um em cada três habitantes vive abaixo do limiar da pobreza e um em cada três jovens está desempregado.

PARECIA FESTA DE RÉVEILLON, DIZ LIBÉRATION

Milhares de pessoas foram às ruas no Gabão comemorar a defenestração do capacho Bongo do poder e se confraternizar com os militares, como mostram as redes sociais. O jornal Libération, francês, descreveu uma “atmosfera festiva, parecia véspera de Ano Novo”. “As pessoas buzinavam, as pessoas ofereciam bebidas aos outros, os civis beijavam guardas e soldados”.

O estopim do levante foi o comunicado do órgão eleitoral gabonês de que Bongo estava eleito para um terceiro mandato, com 64,2% dos votos, contra 30,7% do opositor e ex-ministro, Albert Ondo Osso, e minúsculas votações para os demais candidatos.

A oposição já vinha denunciando a fraude assim que as urnas foram fechadas e o próprio terceiro mandato era denunciado por muitos como inconstitucional. Além disso, o Bongo júnior sofreu um AVC em 2018, causando dúvidas quanto à sua capacidade de efetivamente exercer o mandato.

Na eleição anterior, em 2016, em que Bongo foi declarado reeleito por 5.500 votos de diferença sobre o opositor Jean Ping, houve enormes protestos por dias. Oficialmente foram mortos cinco manifestantes – a oposição disse serem “30”-, o número de presos chegou a mil e o parlamento foi incendiado.

“Em nome do povo gabonês, nós decidimos defender a paz e colocar um fim no regime atual”, afirmaram os militares em comunicado lido no canal de televisão Gabão 24. Perante “uma governação irresponsável e imprevisível que resulta numa deterioração contínua da coesão social, arriscando levar o país ao caos”, as eleições estão canceladas, sublinharam, revogando a fraude pretendida pelo Bongo júnior, e dissolvendo “todas as instituições da República”.

O comunicado apela “à população à calma e à serenidade” e reafirma o apego dos insurretos “em respeitar os compromissos do Gabão para com a comunidade nacional e internacional”.

“Povo gabonês, é finalmente a nossa ascensão rumo à felicidade. Que Deus e as mãos dos nossos antepassados abençoem o Gabão. Honra e fidelidade à Pátria”, concluiu a comissão de frente do assim chamado “Comitê de Transição e Restauração Institucional”.

O ex-presidente Bongo está sob prisão domiciliar e, em mensagem em inglês, pediu a “todos os amigos do mundo para fazerem barulho”. Seu filho Noureddin Valentin Bongo e mais seis ex-assessores foram presos sob acusações de fraude e corrupção.

GABÃO “LIVROU-SE DE PRESIDENTE FANTOCHE”, DIZ MÉLENCHON

A queda de Bongo foi prontamente condenada por Paris e pelo chefe da diplomacia europeia, Borrell. Mas o líder oposicionista e ex-candidato a presidente do partido França Insubmissa, Jean-Luc Melenchon, denunciou que o apoio ostensivo do presidente Emmanuel Macron à reeleição de Bongo “comprometeu mais uma vez a França”, acrescentando que “o Gabão só conseguiu livrar-se do seu presidente fantoche através da intervenção dos seus militares”.

A “boca de urna” de Macron em favor de Bongo incluiu duas viagens ao Gabão, uma em março e outra em junho.

A União Africana irá discutir a crise no Gabão na quinta-feira. O presidente da Comissão da União Africana (UA), Moussa Faki Mahamat, afirmou num comunicado de imprensa que acompanha “com grande preocupação” a situação no país, denunciando “uma violação flagrante” dos princípios da organização.

A UA “apela ao exército nacional e às forças de segurança para que se mantenham estritamente fiéis à sua vocação republicana” e para “garantirem a integridade física” do Presidente Ali Bongo, da sua família e do seu governo.

Por sua vez, o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Webin, apelou às partes envolvidas na crise no país africano para que atuem “no interesse fundamental do povo gabonês”, resolvam “pacificamente as suas diferenças através do diálogo, um regresso imediato à ordem normal” e garantam “a segurança pessoal de Ali Bongo”.

Segundo a porta-voz russa, Maria Zakharova, Moscou “recebeu com preocupação relatos de uma acentuada deterioração na situação interna no amigo país africano. Continuamos monitorando de perto o desenvolvimento da situação e esperamos por sua rápida estabilização”.

“Toda a área, começando pela República Centro-Africana, depois Mali, depois Burkina Faso, agora Níger, talvez Gabão, é uma situação muito difícil”, lamuriou-se o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell. “Os ministros da Defesa e os ministros das Relações Exteriores têm de pensar profundamente sobre o que se passa lá. E como podemos melhorar [o termo é dele] a política com esses países.”

Fonte: Papiro