Oficinas de costura perpetuam exploração de imigrantes em SP
Uma comitiva do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) averiguou, nesta semana, a existência de cerca de 150 oficinas de costura onde trabalhadores, em sua maioria bolivianos, são vítimas de trabalho análogo à escravidão. A conselheira Virgínia Berriel, que coordena a Comissão de Trabalho, Educação e Seguridade Social do CNDH, falou ao Portal sobre as recomendações que devem ser feitas aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para combater a prática.
Representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Virgínia compartilhou detalhes sobre a complexidade da indústria de costura, em que várias etapas da produção são terceirizadas ou subcontratadas, tornando difícil rastrear a origem das peças e os responsáveis pela exploração. Muitas vezes, as condições de trabalho são degradantes e precárias, e os trabalhadores, muitos dos quais são da Bolívia, do Equador, da Venezuela, do Paraguai e do Peru, vivem em situações extremamente adversas.
Endividamento compulsório
A missão do CNDH iniciou-se a partir de denúncias e demandas, com foco em casos de exploração e abuso. A conselheira ressaltou a situação dos migrantes irregulares que são explorados em condições de trabalho escravo. Muitos deles são forçados a pagar taxas para atravessar a fronteira, tornando-se vulneráveis à exploração na busca por oportunidades econômicas. Ela mencionou os desafios em controlar essa situação devido à corrupção na fronteira e à falta de regulamentação eficaz.
“O cara chega da Bolívia, já com gastos enormes, porque eles pagam ao coiote pra entrar no país, ou então para o policial federal, que estipula o que vai cobrar para fazer vista grossa aos ônibus que chegam da Bolívia todo dia. É só passar no Brás [região de comércio têxtil de São Paulo] e ver os ônibus chegando“.
Como em outros setores que mantém trabalho análogo à escravidão, no setor de confecções os trabalhadores são propositalmente endividados para se sentirem presos ao esquema do empregador, trabalhando por centavos.
Virgínia conta que famílias inteiras se encontram nesta situação, em que precisam pagar ao empregador pelas despesas das crianças que não trabalham. “Eles têm essa metodologia, se está o marido e a mulher trabalhando, e tem um filho, eles têm que pagar a comida do filho, o filho não come de graça. Se mora na casa do patrão, que é o local onde está trabalhando, então paga cerca de R$ 30 reais por banho o que representa 30 roupas costuradas.”
Ciclo perpétuo
A missão começou com cerca de 30 depoimentos colhidos no Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami), que revelam uma triste realidade de perpetuação do abuso trabalhista. “Muitas dessas pessoas já passaram pelo trabalho escravo, alguns foram indenizados, compraram umas máquinas de costura, e, agora, exploram o trabalho de outros estrangeiros como eles.”
Ela explica que determinantes culturais favorecem os abusos. “Eles têm uma tal da jornada boliviana, onde eles trabalham de 7 da manhã até a meia-noite. E isso é normal pra eles”, explica ela. Desta forma, mesmo com a legislação brasileira condenando essas práticas, os trabalhadores se recusam a abandonar a lógica do trabalho extenuante e mal remunerado.
“Ele está se matando, está se culpando, trabalhando cada vez mais, é descoberto pela fiscalização trabalhista, foi libertado, recebeu um troco, ele compra a máquina e ele continua fazendo aquilo consigo mesmo ou com alguém do país dele.”
Virgínia mencionou a necessidade de conscientizar os trabalhadores sobre seus direitos, promover denúncias e criar um ambiente de proteção e empoderamento para os migrantes que enfrentam exploração. Mas todo esse esquema perverso existe, segundo ela, porque há grandes varejistas que garantem o mercado para essas roupas baratas.
Beneficiários poderosos
Virgínia discutiu a ideia de uma legislação que exija de grandes empresas de varejo apresentar um roteiro de produção que revele a origem das peças que compram. “A nossa saída é chegar na empresa que comprou o resultado desse trabalho.” Isso visaria responsabilizar as empresas e rastrear a cadeia de produção para evitar a exploração. Ela apontou a dificuldade de abordar essa questão devido à dispersão da produção e à falta de regulamentação abrangente.
Depois que houve denúncias do envolvimento de grandes grifes brasileiras e internacionais com esse tipo de terceirização, o mecanismo se pulverizou. Agora, uma pequena empresa é responsável apenas por cortar, outra por colocar botões, enquanto outras continuam o processo de costura das peças. “Com isso, até chegar na etiqueta, que revela o maior beneficiário, a fiscalização já perdeu o fio da meada”, explica.
Hoje, a própria Auditoria Fiscal do Ministério do Trabalho, ou os procuradores do Ministério Público, de acordo com Virgínia, não conseguem mais chegar na cadeia de produção. “Eles disseram que bateram tanto na C&A, por exemplo, antes da pandemia, que, de repente, foi toda a produção pra Bangladesh e Taiwan, países que fazem a roupa muito mais barata, porque lá a legislação mais flexível facilita o trabalho escravo”, conta.
Outra recomendação seria facilitar o acesso dessas pessoas em situação de migração irregular a serviços públicos de saúde ou a programas sociais como o Bolsa Família. Atualmente, para buscar essa ajuda, essas pessoas precisam se expor ao risco de serem deportadas ou percebidas como exploradas por trabalho precário.
“Se cerca de 30% da economia da Bolívia sai aqui de São Paulo, como diz o Ministério do Trabalho, é um negócio espantoso! Como a maior capital brasileira , que tem o maior PIB do país, se sustenta com trabalho escravo, numa produção explorando pessoas de um outro país? É um negócio assustador!”, questiona ela, indignada.
Audiência pública
Nesta tarde de quinta (31), está ocorrendo a audiência pública do CNDH sobre combate ao trabalho escravo urbano doméstico e na costura. Desde o dia 27 de agosto, o conselho realiza a escuta de trabalhadoras/es e de pessoas refugiadas que atuam como costureiras/os e no trabalho doméstico, vítimas do trabalho escravo urbano.
São ouvidos também representantes do Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo – Coetrae/SP, Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo – Comtrae, Centro de Apoio e Pastoral do Migrante – Cami, Central Única dos Trabalhadores – CUT e Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de São Paulo.
A audiência iniciada às 14 horas ocorre no Plenário D Pedro I, da Assembleia Legislativa de São Paulo.
(por Cezar Xavier)