O ato de agora exalta a memória da Marcha a Washington há 60 anos | Vídeo

Dezenas de milhares de norte-americanos comemoraram em Washington no sábado (26) o 60º aniversário da manifestação que – após uma extensa mobilização por todo os Estados Unidos – foi o ponto de virada do movimento pelos direitos civis dos EUA na década de 1960 e ficou marcado pela ode à igualdade que Martin Luther King proferiu em seu magistral discurso “Eu tenho um sonho”.

“Eu tenho o sonho de que meus quatro filhos cresçam em uma nação na qual eles não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”, diz um dos trechos mais lembrados.

“Há 60 anos o Dr. King nos exortou a lutar contra os males triplos do racismo, da pobreza e da intolerância”, disse Yolanda Renne King, sua neta de 15 anos.

Para os organizadores, a marcha de sábado não foi apenas uma comemoração, mas mais propriamente uma reiteração das reivindicações de 1963, da histórica marcha que abriu caminho para o fim do apartheid no sul dos EUA e a restituição do direito de voto aos negros.

Naquele sábado 28 de agosto de 1963, 250 mil pessoas se concentraram diante do Lincoln Memorial, uma manifestação marcada pela amplitude de sua convocação, por organizações religiosas, sindicatos e movimentos pelos direitos civis. Além de Martin Luther King, foram oradores o líder sindical Walter Reuther; o ativista negro Roy Wilkins, da NACCP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, na sigla em inglês); o líder estudantil John Lewis; a jornalista Daisy Bates; o líder presbiteriano Eugene Carson Blake; o advogado Floyd McKissick, primeiro estudante negro na Faculdade de Direito da Universidade da Carolina do Norte; o ativista pelos direitos civis Whitney Young; o rabino Joachim Prinz; o líder católico Mathew Ahmann e a atriz Josephine Baker.

Também se apresentaram artistas importantes, como a cantora gospel Mahalia Jackson, Bob Dylan, Joan Baez e o trio Peter, Paul and Mary. Na ocasião, marcaram presença o ator Sidney Poitier, primeiro ator negro a vencer o Oscar (no ano seguinte), o escritor James Baldwin e os atores Burt Lancaster, Judy Garland e Marlon Brando.

As “leis Jim Crow” estavam com os dias contados. É que, após a vitória da democracia sobre o nazismo nos campos da Europa e da Ásia e o ímpeto pela descolonização, não havia como manter impermeável ao anseio de liberdade e igualdade a população negra dos EUA. Uma população que, um século depois do fim da Guerra Civil e da escravidão, se via, ainda, submetida à segregação no Sul e à discriminação no Norte, sem direito à cidadania e sem direito a voto em muitos Estados. Segregação que ia desde negros e negras proibidos de frequentar as mesmas escolas, usar os mesmos ônibus e os mesmos bebedouros e sanitários que os brancos, até linchamentos e julgamentos-farsa.

Como disse W.E.B. Du Bois, o fundador da NAACP, em prefácio ao livro de Howard Fast, Caminho da Liberdade, “assim a nação permitiu uma sórdida barganha entre a indústria do Norte e a reação do Sul: os ex-proprietários de escravos se ofereciam a se submeter à supremacia comercial do Norte desde que lhes fosse permitido trazer os negros de volta à escravidão sob todos os aspectos, exceto no nome. Esse acordo foi firmado pelo Pacto de 1876, ao qual se seguiram a privação de direitos civis e o estabelecimento da categoria social pela cor da pele, contidos apenas pela persistente luta do negro e de uns poucos amigos brancos”.

“TRABALHO A TERMINAR”

No atual quadro dos EUA, com o país extremamente dividido entre os democratas e o trumpismo, e com Estados aprovando legislações para retroceder direitos e restringir liberdades, se entende que a única neta de Martin Luther King Jr haja dito aos presentes que, se pudesse falar com seu avô hoje, diria: “Lamento ainda termos que estar aqui para nos dedicarmos novamente a terminar seu trabalho.”

“Hoje, o racismo ainda está conosco. A pobreza ainda está conosco. E agora a violência armada chegou aos nossos locais de culto, às nossas escolas e aos nossos centros comerciais”, afirmou Yolanda.

“Quando as pessoas dizem que a minha geração é cínica, dizemos que o cinismo é um luxo que não podemos permitir”, disse ela. “Acredito que minha geração será definida pela ação, não pela apatia.”

“(King) disse no discurso: ‘Viemos até aqui, Sr. Lincoln, porque há 100 anos, em 1863, você prometeu que seríamos cidadãos plenos, e a América não cumpriu a promessa’”, lembrou o reverendo Al Sharpton, presidente da Rede de Ação Nacional e co-organizador da 60ª comemoração da marcha, junto com a família de Martin Luther King.

Ele chamou os racistas de “conspiradores” contra os direitos civis e o direito de voto. “Os Sonhadores” sobre os quais o Dr. King profetizou em 1963 “estão em Washington, DC”, nesta marcha, declarou Sharpton. “Os ‘conspiradores’ estão sendo autuados em Atlanta, na Cadeia do Condado de Fulton.”

“Esta não é uma comemoração, mas uma continuação”, disse a presidente da AFL-CIO, Liz Shuler à multidão. “Estamos lutando contra um sistema que diz que as mulheres negras ganham 64 centavos para cada dólar que um homem branco ganha. Estamos a lutar contra um sistema que nos priva” do direito de voto.

Kimberle Crenshaw, diretora executiva do African American Policy Forum, disse que o aniversário chega num momento preocupante. “A própria história que é comemorada na marcha não está apenas sendo questionada, mas também distorcida”, advertiu Crenshaw, referindo-se à supressão do ensino de estudos afro-americanos nas escolas públicas da Flórida e do Arkansas, um “esforço concertado para silenciar a conversa sobre essa história que derramou sangue”.

Outro participante da marcha de 1963, Andrew Young, que depois seria congressista, embaixador dos EUA na ONU e prefeito de Atlanta, assinalou que “damos dois passos à frente e eles nos fazem dar um passo para trás”, em entrevista nos escritórios de sua fundação.

“É inevitável para mim que esta nação, como disse Martin Luther King, viva, um dia, o verdadeiro significado do seu credo”, declarou Young.

“PROTEGER E DEFENDER A DEMOCRACIA”

O filho do Dr. King, Luther King III disse a multidão que “precisamos que todos nós estejamos engajados. Papai diria que agora é a hora de preservar, proteger e defender a democracia. Devemos garantir que os direitos de voto sejam preservados para todas as pessoas. Devemos garantir que as nossas mulheres e crianças sejam tratadas de forma justa. Devemos acabar com a violência armada”.

Ele se disse “muito preocupado” com a direção que os EUA estão tomando. “A questão é o que vamos fazer?… Representar a história da maneira certa? Garantir que o ódio e a hostilidade não sejam difundidos em toda a nossa nação? “ “Então talvez um dia seremos uma grande nação. Não estamos personificando a grandeza agora.”

Como registrou o portal People’s World, “as questões de hoje parecem assustadoramente semelhantes às de 1963. A tendência subjacente a tudo isto é que os negros ainda são os economicamente mais pobres da sociedade americana. Os organizadores pretendem lembrar à nação que a marcha original não se tratava apenas de sonhar com um país que cumprisse as suas promessas de igualdade e liberdade para procurar a felicidade. Eles queriam ação legislativa naquela época e querem o mesmo agora”.

A congressista Eleanor Holmes Norton fazia parte do Comitê de Coordenação Estudantil Não-Violenta, aos 26 anos, no Mississippi, quando se tornou parte da equipe que organizou a Marcha em Washington.

“Eu fazia parte da equipe em Nova York e fui a última pessoa a sair porque estávamos levando pessoas para os ônibus”, disse ela. “E enquanto voava de Nova York para Washington, pude ver que a marcha seria um sucesso porque, até onde a vista alcançava, havia multidões. Não tínhamos certeza de quão grande era porque nunca tinha havido uma marcha tão grande antes, mas foi avassaladora.”

Norton, agora com 86 anos, disse que soube, assim que viu quantas pessoas tinham comparecido, que “a marcha não só foi um sucesso, mas elas nos ajudariam nos objetivos da marcha”. A legislação sobre direitos civis e direitos de voto, bem como a Lei de Habitação Justa de 1968, vieram todas em grande parte da energia e do compromisso da marcha, enfatizou.

Agora, 60 anos depois, ela disse que o ambiente político está tão polarizado que é difícil imaginar que as conquistas legislativas após a marcha de 1963 sejam possíveis agora. “Ao contrário do tipo de atmosfera que tivemos durante a Marcha sobre Washington, temos exatamente o oposto agora”, disse Norton.

Fonte: Papiro