Nigerinos se concentraram diante da embaixada da França: "fora tropas de ocupação" | Foto: AFP

Diante das pressões de Washington e Paris e dos acenos do Cedeao – bloco de países da África Ocidental, encabeçado pela Nigéria – para servir de fachada para a restauração do presidente fantoche Mohamed Bazoum, destituído há duas semanas, os governos de Mali e Burkina Faso declararam sua solidariedade ao Níger, advertindo que uma intervenção no país vizinho equivalerá a uma “declaração de guerra” contra eles.

Também a Argélia – que pede a volta da ordem constitucional – considerou inaceitável uma intervenção externa no Níger. “Ameaças de intervenção militar no Níger são uma ameaça direta à Argélia”, afirmou o presidente Abdelmadjid Tebboune, que alertou contra qualquer ação que “inflame toda a região do Sahel”.

Na capital Niamey, milhares de pessoas se concentraram diante de uma base francesa, na sexta-feira (11), para repudiar a intervençao externa e exigir a saída dos colonialistas reciclados. Nos protestos, são ouvidos gritos de “abaixo a França” e vivas a Rússia. Redundância.

Na quinta-feira, a Cedeao anunciou a instauração de uma “força de prontidão” para a restituição de Bazoum ao poder, na primeira reunião do organismo após seu ultimato ao Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria (CNSP) nigerino ser ignorado, mesmo com a ida da subsecretária de Estado Victoria Nuland, mais conhecida como a “parteira do golpe de Kiev de 2014”, a Niamey. Sônica.

Em última instância, os recentes acontecimentos no Níger são a repetição do que já foi visto no Mali, Burkina Faso e Guiné, ex-colônias francesas, que passaram a ser assoladas por milícias salafistas – como a Al Qaeda do Magreb, Estado Islâmico e Boko Haram – cevadas pela destruição da Líbia pela intervenção da Otan em 2011, que desestabilizou o norte africano e o Sahel subsaariano. Em que, depois de uma década de caos, os militares romperam com Washington e Paris, em defesa de seus povos, e pediram a ajuda dos russos para deter os jihadistas.

O líder nigerino, general Abdourahmane Tchiani, disse em seu primeiro pronunciamento que a destituição de Bazoum foi para evitar “o desaparecimento gradual e inevitável” do país. Ele acrescentou que, embora Bazoum tenha tentado convencer as pessoas de que “tudo está indo bem… a dura realidade (é) uma pilha de mortos, deslocados, humilhação e frustração”. “A abordagem de segurança hoje não trouxe segurança ao país, apesar dos grandes sacrifícios” – uma referência à instalação no país de forças e bases estrangeiras. Há tropas francesas, norte-americanas, italianas e alemães operando no país e duas bases de drones da CIA.

Burkina Faso e Mali expressam sua “solidariedade fraterna” ao Níger e advertiram contra as “consequências desastrosas” que “poderiam desestabilizar toda a região”. Os dois governos também anunciaram sua “recusa” em aplicar as “sanções ilegais, ilegítimas e desumanas contra o povo e as autoridades do Níger”. A Cedeao decretou sanções, inclusive o corte de energia elétrica. A BBC relatou que muitas pessoas ficaram “chocadas com o corte de eletricidade no Níger”. O país depende da Nigéria para 70% de seus suprimentos e sofreu apagões.

Burkina Faso e Mali também pediram ao Conselho de Segurança da ONU que impeça qualquer intervenção militar, acusando as potências ocidentais de usar a Cedeao “como um procurador para esconder uma agenda hostil em relação ao Níger”, de acordo com a Al Jazeera.

AVENTURA DA OTAN

Durante uma visita à capital do Níger, Niamey, no início da semana, um porta-voz do governo do Mali comentou: “Gostaria de lembrar que Burkina Faso, Mali e Níger lidam há mais de 10 anos com as consequências negativas… da aventura [da Otan] na Líbia.”

Além de Burkina Faso e Mali, o presidente da Guiné, Mamady Doumbouya – cujo governo também foi resultado de um levante – também expressou “desacordo com as sanções recomendadas pela Cedeao, incluindo a intervenção militar”. A Guiné classificou as sanções de “ilegítimas e desumanas” e exortou o bloco a “reconsiderar a sua posição”.

Na declaração de quinta-feira, após reunião na capital da Nigéria, o presidente nigeriano Bola Ahmed Tinubu adotou o discurso de que a Cedeao irá “priorizar as negociações diplomáticas e o diálogo” e que “nosso dever esgotar todas as vias de engajamento para garantir um rápido retorno à governança constitucional no Níger”.

Mesmo a Itália declarou que uma intervenção militar direta no Níger seria contraproducente e inadequada.

Outra contradição trazida por uma intervenção militar capitaneada pela Nigéria foi registrada pelo New York Times, observando os “laços étnicos, língua e meios de subsistência do comércio ativo” que unem as duas populações. Os falantes de Hausa estão espalhados pelos dois países, divididos pela fronteira colonial traçada entre as colônias nigerianas francesas e nigerianas britânicas. “Se uma luta começar, quem será o destinatário? Eu e a maioria de nós tem dupla nacionalidade”, disse ao NYT um comerciante de tecidos de 24 anos, que planeja se casar com uma mulher nigerina.

Por sua vez o Financial Times chamou a atenção para a “feroz oposição doméstica” na Nigéria, decorrente da indignação contra o selvagem programa econômico de Tinubu ditado pelo FMI, com o corte dos subsídios aos combustíveis, que triplicou os preços da gasolina, enquanto a inflação está em 22%, e se espalham as greves e os protestos.

Diversos partidos, conselhos de anciãos, organizações religiosas e até mesmo o ministro da Defesa, general Gwabin Musa, advertiram que uma guerra “seria como lutar contra seu irmão” e advogando que a Nigéria e o Níger devem ser “próximos um do outro para sempre”.

COLONIALISTAS

“Vamos fazer os franceses partirem! A Cedeao não é independente, está sendo manipulada pela França, há influência externa”, disse Aziz Rabeh Ali, membro da entidade estudantil que participou das manifestações, segundo a AFP. “Abaixo a França, abaixo a Cedeao”, gritavam coletivamente os manifestantes. O governo Tchiani anulou na semana passada uma série de acordos de cooperação militar com o país europeu e suspendeu as exportações de urânio e ouro para seu ex-colonizador.

Apesar da independência formal, como nas outras ex-colônias francesas, o Niger continua tutelado pela moeda do colonizador, sob o chamado franco CFA, que permitiu a Paris manter relações comerciais altamente desiguais com suas colônias africanas. A moeda tornava barato para os Estados membros importar da França e vice-versa, mas proibitivamente caro para eles exportarem qualquer coisa para qualquer outro lugar.

A dependência forçada criou, na África Ocidental francófona, um mercado cativo para os franceses e, por extensão, para o resto da Europa e atrapalhou o desenvolvimento econômico regional por décadas e persiste até hoje. Em resumo, não tem controle sobre sua própria moeda (além de ter de depositar no BC francês 50% das reservas).

URÂNIO

Espoliação que marca o controle francês sobre a mineração de urânio do Níger, com uma “joint venture” em que 85% é de propriedade da Comissão Francesa de Energia Atômica e duas empresas francesas, enquanto o governo do Níger possui apenas 15%. Registre-se ainda que a taxa de eletrificação do país africano é inferior a 18% e até 90% de sua energia é importada da Nigéria.

“O Níger produz mais de 5% do urânio do mundo, e seu urânio é de altíssima qualidade. Metade das receitas de exportação do Níger vem das vendas de urânio, petróleo e ouro. Um terço da energia elétrica produzida na França utiliza urânio do Níger, numa época em que 42% da população do país africano vive abaixo da linha da pobreza.

Fonte: Papiro