João Donato se vai, mas nos deixa os sons do tempo da delicadeza
Ícone da Bossa Nova, o compositor morreu aos 88 anos no Rio de Janeiro, após 74 de carreira
João Donato em apresentação no auditório do Ibirapuera
A estridência do Brasil contemporâneo não nos permite apreciar a bossa nova como deveríamos. Ela nos soa até anacrônica com sua sonoridade suave, suas letras minimalistas e cantores de vozes pequenas. Mas é este conceito inovador da música brasileira, do final dos anos 1950, que nos deixa como legado o compositor João Donato.
Ele partiu aos 88 anos, nesta segunda-feira (17), no Rio de Janeiro, após ter celebrado a volta do presidente Lula ao governo e a posse de Margareth Menezes no Ministério da Cultura. Em vídeo, nas redes sociais, ele pergunta a uma assistente virtual quem é o presidente do Brasil e, com semblante tranquilo diz “show”, após ouvir a resposta. “Agora o compositor pode compor em paz”, diz o post, numa referência a sua canção com Gilberto Gil, A Paz. “Que contradição, só a guerra faz nosso amor em paz”.
No vídeo afetuoso, ele estava comemorando a volta da delicadeza ao governo. O fim da grosseria de um ex-presidente que jamais ficava pesaroso com a morte de um artista brasileiro, apenas com a de torturadores e reacionários. Lula não podia deixar de expressar seus sentimentos a todos que lamentam a partida de Donato. Margareth também lembrou das parcerias musicais.
“João Donato via música em tudo. Inovou, passou pelo samba, bossa nova, jazz, forró e na mistura de ritmos construiu algo único. Manteve-se criando e inovando até o fim”, escreveu o presidente Lula. “Que encontre a paz que tanto cantou. Sua música permanecerá conosco. Meus sentimentos aos familiares, amigos, músicos que nele se inspiraram e fãs no mundo todo.”
A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) destacou a pluralidade musical do compositor, desde antes da Bossa Nova. “Antes da Bossa Nova, já havia João Donato. Cantor, compositor, arranjador e pianista de talento incomparável, foi um pioneiro da música brasileira moderna, e se manteve genial até o fim da vida, sempre cantando, gravando, fazendo shows e nos presenteando com tantos discos e canções clássicas da nossa música”.
Ela também enfatizou o caráter progressista do artista, que já celebrou o aniversário do Partido Comunista, cantando. “Um gigante da cultura brasileira, e aliado das causas mais justas e solidárias. Lembro dele tocando no aniversário de 95 anos do PCdoB, quando tive o privilégio de dar uma canja discreta na bateria. Viva João Donato!”No vídeo publicado pela deputado é possível ver que a baterista é modesta, afinal acompanha Donato com a graça da batida sincopada da bossa.
O prazer de tocar toda uma vida
Com toda a idade e problemas de saúde, ainda tinha agenda de shows. Prometia inclusive gravações aos fãs, sempre que era perguntado. O álbum “Quem é quem” foi eleito um dos cem melhores discos de todos os tempos pela revista Rolling Stone, foi tema de um livro escrito pelo produtor Kassim e de um especial de TV apresentado por Charles Gavin. Mas sua música reverbera na bossa eletrônica de Bebel GIlberto, e outros, uma modernização do gênero que virou febre no mundo, no início deste século XXI.
O álbum premiado é o primeiro dele com parcerias para letrar seus instrumentais. Poemas minimalistas como haicais, que combinam bem com a luminosidade tropical das melodias e acordes de Donato. É deste álbum a obra prima A rã, ainda sem a letra genial de Caetano Veloso.
Mesmo sendo um músico de fusões jazzísticas, o cânone da bossa nova poucas vezes foi tocado com tanto rigor e clareza. A busca pelo acorde mais estranho e perfeito para cada silaba, a síncope das batidas que nunca encaixam com a melodia, a melodia de intervalos curtos entre as notas, o canto suave e as letras com sentimentos expressos por meio de paisagens da natureza. Era disso que era feita a bossa nova, era isso que fazia Donato.
Como os mais destacados inventores da música brasileira, ele era como Jobim e Villa-lobos, um apreciador apaixonado do impressionismo francês do início do século XX. Debussy e Ravel eram parafraseado descaradamente por esses autores no início de carreira. A luminosidade dos borrões tonais da Paris do início do século comparecem na música carioca de meados do século. Os jardins de Giverny são trocados pelas areias e ondas de Ipanema. O tempo da delicadeza, como qualifica Chico Buarque aquele Brasil criativo e resplandecente que encantava o mundo com Niemeyer, bossa nova, e tantos outros modernismos.
Como demorou muito para letrar seus instrumentais, Donato sempre foi mais conhecido por outros músicos. E não se importava com isso. Esse era seu mundo. O dos iguais que sabem montar e apreciar um acorde inusitado e dissonante que cabe perfeitamente numa melodia incomum.
Foi um grande prazer encontrar os músicos cubanos e incorporar a latinidade caribenha em sua batida ao piano. Quando Cuba perdeu Fidel, Donato estava fazendo um show em Havana. Pra ele foi simbólico, pois “tocar com os cubanos é um prazer inacreditável, porque sempre fui admirador do seu estilo de música”.
Como Lula disse, Donato nunca foi músico de um gênero só. Assim como incorporou o jazz cubano a sua bossa, também tocava forró, samba, chorinho, e o que achasse que rendesse um improviso ao piano. Por isso, foi muito influente para muitos músicos instrumentais de todo o mundo, inclusive os bossa novistas. Poucos podem dizer o mesmo.
(por Cezar Xavier)