Em entrevista ao Portal Vermelho, Camilo Caldas diz que relatório revela a amplitude do discurso de ódio, muito além das plataformas digitais

O relator Camilo Caldas entrega o relatório ao ministro Silvio Almeida, ao lado da presidente do GT, Manuela Dávila e a assessora especial de Participação Social e Diversidade, Anna Karla Pereira. Foto: Clarice Castro/MDHC Foto: Clarice Castro/MDHC

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) divulgou neste início de julho o “Relatório de Recomendações para o Enfrentamento ao Discurso de Ódio e ao Extremismo no Brasil”. Para entender os encaminhamentos que podem ser tomados, o Portal conversou com o relator do texto, o advogado e professor Camilo Onoda Luiz Caldas, pós-doutor pela Universidade de Coimbra em Democracia e Direitos Humanos, que explicou as potencialidades do relatório e o sentido conceitual do debate. (Leia trechos da entrevista abaixo).

O documento tem o mérito de contemplar diferentes visões da sociedade, como especialistas, gestores públicos, representantes de ministérios, comunicadores, religiosos e empresas de tecnologia. O objetivo foi consensuar um diagnóstico, diretrizes e recomendações para uma mudança de mentalidade, políticas públicas e regulação em torno de temas como as plataformas digitais e da inteligência artificial. Mas Caldas considera que a regulação da tecnologia não é o cerne do relatório, que pretende tratar discurso de ódio como um fenômeno mais amplo que aquele disseminado pelas redes sociais.

Entre os principais temas a serem enfrentados, o GT elencou 11 grupos, instituições e setores da sociedade que são mais atacados pelo discurso extremista e os tipos de preconceito mais frequentes. Os alvos preferenciais de discursos de ódio são mulheres, negros e indígenas, LGBTQIA+, pessoas pobres, religiões, jornalistas, cientistas e políticos, entre outros.

“Esse relatório é um marco, pra mim. Um marco de um novo tempo e que isso vai ganhar um outro patamar de discussão em todos os poderes e todas as esferas da federação”, resumiu. 

Confira a íntegra do relatório aqui e leia a entrevista do relator:

Que medidas podem ser implementadas mais rapidamente?

Esse tipo de relatório para ter efetividade precisa ter um acompanhamento das recomendações. Por isso, a recomendação mestra é a criação desse Fórum Permanente. De qualquer maneira, há algumas coisas que podem ser implementadas num prazo mais curto, sobretudo aquelas que não dependem de dotação orçamentária. Do ponto de vista logístico, tem alguns questões que até podem ser implementadas. Mas tem outras que não dá pra fazer do dia pra noite, como preparar um material didático de qualidade.

Quando a gente fala em escolas e assistência psicológica, é uma coisa que pode ser implantada rapidamente, porque já tem uma estrutura. Outras envolvem custo e orçamento, que não estão no controle do Ministério de Direitos Humanos. Mas [esta] já tem uma rede e pode ser implantada de forma mais imediata, assim como aquelas que podem ser feitas em parceira com uma rede de colaboradores da sociedade civil, sobretudo as universidades que querem colaborar contra o discurso de ódio. Muitas já estão desenvolvendo este trabalho em núcleos, mas, não existe um programa nacional de combate ao discurso de ódio para integrá-las, por isso o Ministério de Direitos Humanos cria um movimento neste sentido.

Durante o processo do GT, foram aparecendo estas iniciativas que precisam ser replicadas e integradas, para que as pessoas possam denunciar e receber assistência. Isso pode ter uma aplicação mais imediata.

O Ministério e o presidente estão preparando um decreto sobre um selo sobre Direitos Humanos para empresas, que já é uma recomendação colocada no relatório.

Imagino que há esse esforço de envolver empresas e o setor privado neste objetivo…

As empresas de plataformas digitais acompanharam a discussão. Já existe um efeito imediato nas plataformas, porque elas estão percebendo que o PL das Fake News está correndo, e já têm uma percepção de que as coisas podem mudar para elas.

Elas começam a perceber que não podem ficar indiferentes quando vêem que já tem um grupo de trabalho criado pelo governo. Ficaram indiferentes por muito tempo e depois passaram a adotar uma postura mais tímida. Conforme vão vendo uma movimentação de todos os poderes convergindo para o mesmo ponto, — Judiciário, Executivo e Legislativo —, que é para uma regulação. Esse sentimento da necessidade de hetero-regulação vem da falta de auto-regulação das empresas, e elas começam a perceber isso.

Do ponto de vista tecnológico, elas têm condições de enfrentar esse tipo de situação, mas tem um custo. O grande medo delas é que mude o Marco Civil da Internet e elas comecem a ser responsabilizadas pelo conteúdo. Ou então que mudem regras como a notificação judicial, que praticamente inviabiliza [a responsabilização das plataformas]. Extrajudicialmente, não, [é mais fácil]. Assim, elas estão tensionando neste sentido, e outro medo é ter que investir para controlar. Vêem que têm que dar alguma resposta para a opinião pública.

Outras empresas não querem se identificar com esses disseminadores de ódio. Por isso, existe o movimento Sleeping Giants [ativistas digitais que combatem discurso de ódio na internet], que denuncia para a empresa onde a marca dela está aparecendo, em canais de disseminação desse discurso. No final, conscientes ou não, elas são financiadoras do ódio pela monetização desses canais de conteúdo. 

Algumas não querem estar associadas a isso por questão ética, outras porque não querem ser expostas. Com o Sleeping Giants, a empresa não tem a desculpa de dizer que não sabia que sua marca estava lá.

O senhor acha que o debate que está sendo feito contribui para reduzir a resistência ao PL das Fake News (2630)?

A gente até tem no conteúdo uma recomendação sobre isso, mas não queremos que isso seja algo central no relatório. Este não é o cerne, até porque essa discussão está muito adiantada no legislativo.

O GT tem sido visto como algo criado para pensar restrições às plataformas digitais. Repórteres que perguntavam se este era um grupo de trabalho para “fazer censura nas redes”. A política de enfrentamento ao discurso de ódio é muito mais ampla. 

A questão da disseminação do discurso de ódio pelas plataformas digitais é um componente de uma grande discussão. Não vamos fazer uma recomendação sobre uma  coisa que o legislativo já encampou.

Por outro lado, como o relatório traz muitos estudos, dados e estatísticas sobre como o discurso de ódio se espraia pelas plataformas digitais, dá para encontrar subsídios para o debate sobre o PL das Fake News. 

O GT chegou a discutir questões judiciais e penais, mudanças e reformas?

A gente fala em um movimento para responsabilização judicial desses “superdisseminadores” de ódio, os “superspreaders”, que é o termo usado. Essas pessoas tem que ser responsabilizadas. 

São pessoas que tem poder, tem propósito, faz daquilo um meio de vida. Disseminar ódio virou negócio político e financeiro.

Então, o poder judicial tem que responder em cima desses. Porque quem entra no turbilhão nem dá pra responsabilizar porque são centenas de milhares de pessoas. Mas está claramente sugerido no relatório que o irradiador desse discurso precisa ser responsabilizado.

E tem que ter uma política pública que de mais visibilidade ao superspreader democrático que a gente defende. Dar mais visibilidade as pessoa que falam do respeito a diversidade. Então, tem uma dupla estratégia de repressão ao disseminador de ódio e defesa do superspreader democrático.

O GT recebeU contribuições interessantes da experiência internacional?

Sim, recebemos uma comissão da Finlândia e várias pessoas do grupo conhecem experiências do ensino utilizadas em outros países. Parte do que a gente propõe como “educação midiática” tem a ver com experiências que são feitas na Alemanha, na Áustria, na Finlândia. 

Nos últimos 20 anos, a internet ganhou um outro peso na vida e na formação intelectual das pessoas. Só que a escola não educou as pessoas para lidar com a informação que vem do mundo digital.

Essa é uma das explicações de porque o letramento digital muito tardio dos idosos dificulta compreensão deles sobre as informações que recebem da internet. “Se está no WhatsApp, é verdade”, é uma frase comum para essas pessoas, que tem dificuldade para entender conteúdo patrocinado, fake news…

Mas o jovem também entra na escola e não sabe como funciona o algoritmo, o processo editorial, diferenciar fontes, conferir e checar informação. Isso tem que fazer parte do repertório da educação das pessoas. 

Como funciona a internet? Por que algumas pessoas ficam em evidência? Quem são as câmaras de eco, aqueles conteúdos que ficam sendo sugeridos? Como quebra essa câmara de eco onde tudo tem o mesmo viés?

Isso não foi ensinado para toda uma geração e, atualmente, ensinado de uma certa maneira tímida. Alguns países já perceberam isso e falam que precisam educar digitalmente as pessoas para compreender a internet. Era assim quando se educava a pessoa a consultar uma enciclopédia, fazer um trabalho de escola, uma pesquisa científica. Como você encontra a verdade? Porque agora tem um lugar operando com a verdade, que é a plataforma digital. 

Uma educação digital para o uso da internet que a gente precisa internalizar em nossos processos pedagógicos de uma maneira mais clara. Isso é produto da experiência internacional. 

Como tratar isso de forma transversal no governo?

O grupo de trabalho já era feito por vários Ministérios [Comunicação, Povos Indígenas, Mulheres, Justiça e Segurança Pública, Igualdade Racial, Educação, Advocacia Geral da União]. Porque as políticas públicas colocadas ali não são políticas de um só Ministério, e não são só federais, mas estaduais e municipais. 

A transversalidade se dá tanto nesse eixo, do pacto federativo, e se dá de maneira transversal também dos Poderes. O Poder Judiciário, o Ministério Público e a Academia de Polícia Civil ou Militar não têm formação sobre discurso de ódio. Eu conheço o que cai nos concursos, provas o que dão nos cursos de atualização para os magistrados etc. Isso não está no repertório deles e tem que entrar. 

Então não é uma coisa exclusiva do governo federal, mas dos três níveis da Federação, nem do Poder Executivo, e, dentro do Executivo, não é algo que compete exclusivamente a um Ministério. Inclusive, porque esses gabinetes de ódio tem uma face internacional, que precisa envolver Relações Exteriores, tem a face da repressão, que envolve Justiça, tem Educação, tem saúde mental, tem uma disputa de comunicação sobre este tema. E envolve Planejamento e Ministério da Fazenda, óbvio, porque precisa de recurso orçamentário.

E isso é apenas o início de algo que vai se desenvolver ao longo dos anos. Ocorre que não tínhamos isso pensado como uma política de estado, mas os últimos anos mostraram que tem que ter isso incorporado nos diversos níveis. 

É um marco pra mim esse relatório. Um marco de um novo tempo e que isso vai ganhar um outro patamar de discussão em todos os poderes e todas as esferas da federação. 

(por Cezar Xavier)