Secretário-geral Antonio Guterres | Foto: ONU

“Cerca de 3,3 bilhões de pessoas – quase metade da humanidade – vivem em países que gastam mais com pagamento de juros da dívida do que com educação ou saúde”, disse o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, citando um novo relatório publicado pelo Grupo Global de Resposta à Crise da ONU sobre Alimentos, Energia e Finanças (GCRG) na quarta-feira (12).

Ele advertiu que “metade do nosso mundo está afundando em um desastre, alimentado por uma crise de dívida esmagadora” e pediu alívio fiscal urgente. “E, no entanto, como a maioria dessas dívidas insustentáveis está concentrada em países pobres, elas não são consideradas um risco sistêmico para o sistema financeiro global”, disse Guterres. “Isso é uma miragem.”

“3,3 bilhões de pessoas é mais do que um risco sistêmico. É uma falha sistêmica. Os mercados podem parecer não estar sofrendo — ainda. Mas as pessoas estão”, sublinhou Guterres.

“É um resultado da desigualdade construída em nosso obsoleto sistema financeiro global, que reflete a dinâmica do poder colonial da época em que foi criado.”

“Uma parcela crescente é mantida por credores privados que cobram taxas de juros altíssimos para muitos países em desenvolvimento”, registrou Guterres. “Em média, os países africanos pagam quatro vezes mais por empréstimos do que os Estados Unidos e oito vezes mais do que os países europeus mais ricos.”

Como a ONU detalhou em um relatório separado na quarta-feira, a pandemia de Covid-19, as guerras e a emergência climática levaram mais 122 milhões de pessoas à fome em todo o mundo desde 2019, com cerca de 735 milhões de pessoas sofrendo de falta de alimentos desde o ano passado.

Em termos de nutrição, mais de 3,1 bilhões de pessoas em todo o mundo não puderam pagar uma dieta saudável em 2021 – quase o mesmo número que vive em países obrigados a priorizar o pagamento da dívida em detrimento do bem-estar social.

De acordo com o relatório do GCRG, Um Mundo de Dívidas: Um Fardo Crescente para a Prosperidade Global, tais problemas estão de fato conectados. Isso porque, como Guterres observou, “alguns dos países mais pobres do mundo estão sendo forçados a escolher entre pagar suas dívidas ou servir seu povo”.

“Eles praticamente não têm espaço fiscal para investimentos essenciais nas metas de desenvolvimento sustentável ou na transição para energia renovável”, disse Guterres.

As dívidas interna e externa dos governos vêm aumentando há décadas, e “crises em cascata nos últimos anos desencadearam uma aceleração dessa tendência”, observa a análise do GCRG. A dívida pública global atingiu um recorde de US$ 92 trilhões em 2022, dos quais os países de baixa e média renda detêm cerca de 30%.

A dívida pública aumentou a um ritmo mais rápido no Sul Global do que no Norte Global na última década devido a “necessidades crescentes de financiamento para o desenvolvimento” – agravadas pelo coronavírus, custo de vida e crises climáticas – e porque “uma a arquitetura financeira internacional desigual torna o acesso dos países em desenvolvimento ao financiamento inadequado e caro”, diz o relatório.

Em meio a essa combinação de necessidades crescentes e falta de acesso a fontes de financiamento acessíveis, o número de nações que enfrentam altos níveis de dívida aumentou de 22 em 2011 para 59 em 2022.

O relatório observa que o chamado sistema de Bretton Woods – composto pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial – foi estabelecido por um punhado de países ricos perto do final da Segunda Guerra Mundial, antes da descolonização. Os Estados Unidos e a Europa continuam a desempenhar um papel descomunal na formação de ambas as instituições, que impuseram programas de “ajuste estrutural” que implicam em austeridade (arrocho, melhor dizendo) e privatização em nações empobrecidas ao longo da era neoliberal.

Ainda segundo o estudo da ONU, os empréstimos em moedas estrangeiras aumentam a vulnerabilidade dos países em desenvolvimento a choques externos e dificultam o pagamento da dívida. Além disso, mostra o relatório, a dependência dos países de baixa e média renda em relação aos credores privados torna os empréstimos mais caros e a reestruturação da dívida mais complicada.

“A dívida é uma importante ferramenta financeira que pode impulsionar o desenvolvimento e permitir que os governos protejam e invistam em seu povo”, enfatizou Guterres.

“Mas quando os países são forçados a tomar empréstimos para sua sobrevivência econômica, a dívida se torna uma armadilha que simplesmente gera mais dívidas”.

O relatório fornece “um roteiro para financiar o desenvolvimento sustentável”: enfrentar o alto custo da dívida e os riscos crescentes de sobre-endividamento; aumentar maciçamente o financiamento acessível de longo prazo para o desenvolvimento; e expandir o financiamento de contingência para os países necessitados. Numerosas vozes têm se levantado pelo imediato cancelamento da dívida dos países mais pobres.

“Reformas profundas no sistema financeiro global não acontecerão da noite para o dia”, reconheceu Guterres. “Mas há muitos passos que podemos tomar agora.” “A ação não será fácil”, acrescentou. “Mas é essencial e urgente. O tempo acabou para 3,3 bilhões de pessoas.”

Na semana passada, a ONU calculou que a lacuna de investimento para atingir suas metas de desenvolvimento sustentável cresceu de US$ 2,5 trilhões por ano em 2015 para mais de US$ 4 trilhões por ano em 2022. A agência comercial do órgão observou que o alívio da dívida oferece uma maneira de os países ricos ajudarem fechar este enorme déficit de financiamento.

Fonte: Papiro