Julgamento no TSE é apenas o início da descida de Bolsonaro ao inferno
Foi no “cercadinho” do Palácio da Alvorada que, em ao menos dois momentos, Jair Bolsonaro definiu a própria vida como “um inferno”. O primeiro foi em fevereiro de 2021, quando uma nova onda da pandemia de Covid-19 expôs, mais uma vez, a negligência da gestão bolsonarista. “Minha vida é um inferno”, resmungou o então presidente a apoiadores.
Na segunda vez, em abril de 2022, a lamúria foi acompanhada por uma explicação. “Está um inferno a minha vida. Se for tratar de político, eu não faço mais nada”, disse Bolsonaro, de cara fechada, a seis meses da eleição que decretou o fim de seu governo.
Autoengano não é crime, e o agora ex-presidente não precisará prestar contas dessas declarações. Mas sua vida torta deve, sim, virar um inferno a partir de quinta-feira (22), data em que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) inicia o julgamento de uma das muitas ações que podem – e vão – torná-lo inelegível por oito anos.
Trata-se, especificamente, de uma Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral). Dez em cada dez especialistas garantem que o ex-capitão não tem chance nenhuma de ser absolvido. O TSE tem sete ministros – Alexandre de Moraes, André Ramos, Benedito Gonçalves, Cármen Lúcia, Floriano de Azevedo, Nunes Marques e Raul Araújo Filho. Aliados de Bolsonaro já tentam enxergar um alento se o placar final não for uma derrota por 7 a 0. O próprio ex-presidente declarou, no sábado (17), que “os indicativos não são bons”.
O que vai a julgamento é a reunião de Bolsonaro, ainda na Presidência da República, com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada. No encontro, convocado pelo próprio Planalto em julho de 2022, Bolsonaro pôs em dúvida, sem provas, a lisura do processo eleitoral no Brasil, em especial a urna eletrônica.
Em 1º de junho, Benedito Gonçalves, corregedor-geral da Justiça Eleitoral, liberou para julgamento essa ação, que é movida pelo PDT e questiona a constitucionalidade da reunião com embaixadores estrangeiros. O Ministério Público Eleitoral pede a inelegibilidade. “Na visão do vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gustavo Gonet Branco, Bolsonaro usou indevidamente o cargo e, por isso, deve ser condenado por abuso de poder político.
“A busca do benefício pessoal também foi tornada clara. O uso de recursos estatais para a atividade da mesma forma está estampado nos autos”, afirmou Paulo Gustavo. “Todo o evento foi montado para que o pronunciamento se revelasse como manifestação do Presidente da República, chefe de Estado, daí a chamada de embaixadores estrangeiros e o ambiente oficial em que a reunião ocorreu. O abuso do poder político está positivado.”
A Corte incluiu como prova no processo a minuta golpista apreendida pela Polícia Federal na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. De acordo com a minuta, o presidente e membros do Ministério da Defesa deveriam intervir no TSE para anular o resultado da eleição.
Enquanto aguarda a sentença, Bolsonaro acumula reveses. Segundo a revista Veja, a Polícia Federal encontrou um roteiro para um golpe de Estado no celular do tenente-coronel Mauro Cid, seu ex-ajudante de ordens. O documento aponta caminhos ilegais para anular o pleito de 2022, com apoio das Forças Armadas, em caso de não reeleição do então presidente.
Há outros casos, como a mal explicada apropriação das joias sauditas e o possível envolvimento de Bolsonaro em um grampo ao STF (Supremo Tribunal Federal). Em meio a isso, no Congresso, a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) dos atos golpistas de 8 de janeiro já convocou três bolsonaristas a deporem.
Mas os holofotes estão virados para o TSE. O relatório da ação do PDT conta com mais de 500 páginas, o que provavelmente forçará o adiamento do julgamento. Se algum ministro pedir vista, o prazo para a conclusão do caso se dilatará ainda mais. Porém, nada disso vai impedir um desfecho melancólico para o ex-presidente.
É um caso histórico – o primeiro que pode levar à condenação do gênero de um ex-presidente da República. Estima-se que, após o detalhado voto de Benedito Gonçalves, todas as sessões do TSE até o recesso serão tomadas por esse julgamento. Mais cedo, mais tarde, essa primeira condenação se consumará.
Ainda assim, o julgamento no TSE será apenas o início da descida de Bolsonaro ao inferno. Só no TSE, o ex-presidente responde a mais 15 ações. Além disso, tramitam no STF quatro inquéritos contra Bolsonaro – e, em alguns casos, ele pode ser condenado até à prisão.
Suas últimas aparições públicas, tímidas e mais ponderadas, sugerem uma tentativa de sobreviver como líder da direita – ou, no mínimo, da extrema-direita – na arena política. “Não vamos nos apavorar com o resultado que vier”, declarou o ex-presidente no sábado. Difícil não haver preocupação. Bolsonaro parece fadado a cumprir o vaticínio do poeta Virgílio: “É fácil descer ao inferno: suas portas estão abertas dia e noite. Mas voltar – e ver a luz do dia –, eis a tarefa, eis o trabalho”.