Belém é modelo para o Brasil em regularização fundiária
Desde 2021, a cidade de Belém, capital do Pará, é destaque quando o assunto é regularização fundiária. O trabalho desenvolvido pela Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (Codem) tem chamado a atenção pelos resultados em um tema que foi deixado de lado por décadas.
Responsável pelo ordenamento territorial e fundiário da cidade de Belém, a Codem tem como diretor-presidente Lélio Costa (PCdoB), que assumiu a empresa de economia mista em 2021, desde o início da gestão do prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL).
Lélio é dirigente nacional do PCdoB, desde 2007 esteve como deputado estadual entre 2015 e 2018. Engenheiro agrônomo de formação e mestre em Gestão Pública, Lélio é servidor de carreira do Patrimônio da União, onde atuou junto ao histórico dirigente do PCdoB Neuton Miranda e que substituiu como superintendente do órgão após seu falecimento.
Com a proposta desde a campanha de Edmilson de construir um grande programa de regularização fundiária, a Codem já é responsável por entregar mais de 10 mil certidões de propriedade e projeta terminar 2024 com o dobro de entregas. O feito coloca fim ao descaso com a população mais humilde que só recebeu da prefeitura, nos 16 anos anteriores à nova gestão, menos de quatro mil “concessões de uso”.
O sucesso da regularização deverá ser replicado em outras metrópoles, uma vez que o Ministério das Cidades já monitora o que é feito em Belém para levar para outros estados.
Confira a entrevista com Lélio e veja como funciona “o maior programa de regularização fundiária da história de Belém”.
Belém possui mais de 160 mil imóveis esperando a regularização, o que atinge 700 mil pessoas e faz com que cerca de R$ 14 bilhões deixem de circular na capital paraense. São estes os com que trabalha?
São estes os números. Para se ter noção, vamos falar um pouco de Brasil para podermos contextualizar. O Brasil tem cerca de 60 milhões de imóveis. Deste número, 30 milhões não tem nenhum tipo de segurança jurídica da propriedade, ou seja, não tem registro algum cartorial. O que estou falando é que a metade dos imóveis no Brasil não tem registro. Não tem segurança jurídica da propriedade, artigo quinto da Constituição Federal, o direito sagrado à propriedade.
E isso deixa de movimentar na economia nacional 2,5 trilhões reais. Essa irregularidade tem um impacto muito grande na economia do país. Ano passado o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou uma pesquisa onde mostra que há uma correlação direta entre regularização fundiária urbana e o impacto positivo na renda das famílias. O Ipea assegura que o investimento em regularização fundiária no Brasil pode reduzir a desigualdade de renda em 2,4 pontos percentuais.
Então é um tema extremamente sensível e necessário para o Brasil. Temos um país extremamente desigual. O acesso à terra na cidade é um privilégio para quem sempre foi muito abastado. Os mais humildes, os trabalhadores, sempre tiveram o acesso à terra regularizada negado. Então constituir políticas e programas sociais que garantam a inclusão sócio territorial no Brasil é fundamental para combater a desigualdade e a pobreza. A regularização fundiária, portanto, está inserida neste cenário.
E para o recorte de Belém, como enxerga a situação?
Quando eu faço o recorte para Belém são estes números mencionados. No município de Belém, que é uma metrópole que tem mais de 400 anos, temos cerca de 1,5 milhão de pessoas, aproximadamente, com dados atualizados pelo IBGE em 2023. No total de imóveis em Belém, temos 430 mil. Destes, 320 mil imóveis são moradias. Ano passado, o MapBiomas divulgou uma pesquisa mostrando que, em Belém, 55,5% das moradias são consideradas precárias, ou aglomerados subnormais, que se refere a ocupações em favelas. Veja, há uma aguda crise neste eixo urbano na metrópole de Belém.
E destes 320 mil imóveis de Belém que eu havia citado, 60% não tem registro de propriedade, não tem segurança jurídica. Então estou me conectando a um número muito grande de famílias que não tem a garantia de dormir, acordar e saber que aquele imóvel tem o direito consagrado à propriedade.
Estou falando de um município que precisa corrigir esta chaga estrutural, que é a negação do acesso à terra regularizada aos trabalhadores.
Para isso foi desenvolvido o programa Terra da Gente?
O programa de regularização fundiária que a Prefeitura de Belém, coordenado pela Codem, implementa hoje responde a este problema de fundo. Criamos aqui em janeiro de 2021 o programa Terra da Gente para garantir a segurança jurídica dos imóveis para a população mais humilde da cidade. Revisamos todo o arcabouço legal, a base legal da nossa aplicação é a Lei 13.465 de 2017, regulamentada pelo Decreto Lei 9.310 de 2018. Nós criamos a nossa Lei municipal com base na Lei federal, claro, adaptando à nossa necessidade. Revisamos toda a parte metodológica, todos os procedimentos, revisamos a base tecnológica, fizemos uma formação com os técnicos, qualificamos e requalificamos a nossa mão de obra, fizemos ampla relação com as universidades e setores populares organizados para começamos a implementar a estratégia, assim como dialogamos muito com os cartórios, pois a segurança jurídica dos imóveis só se dá com o registro em cartório. Com isso já superamos bem mais de 10 mil certidões de propriedade emitidas.
A previsão é entregar ao menos 20 mil títulos de regularização fundiária? No primeiro ano do Programa Terra da Gente foram entregues 4.438 títulos de propriedade, hoje o número já supera 10 mil imóveis regularizados?
Isso. Queremos fechar esse ano com 15 mil imóveis e ano que vem vamos superar 20 mil imóveis. Isso já consagra como um dos maiores programas de regularização fundiária da história do Brasil.
Quais características sócio-históricas levaram Belém a ter tantos imóveis em irregularidade na questão fundiária?
Houve historicamente em Belém uma reprodução do que aconteceu em todo o Brasil na questão do acesso à terra regularizado pelas famílias. As famílias foram se organizando onde foi permitido, foram fazendo ocupações e consolidando estas ocupações. Belém não teve, ao longo do tempo, infelizmente, um planejamento de ocupação urbana. Isso foi um problema de muito tempo e nas últimas gestões, principalmente nos últimos dois mandatos, ao todo 16 anos, não foi feito nada para se garantir a regularização fundiária. Para você ter uma ideia, nos últimos 16 anos anteriores à nossa gestão, a Codem titulou 3.820 propriedades e somente com a “concessão de direito real de uso”, não como propriedade. Nesta gestão já superamos em mais de 10 mil certidões de propriedade. Já superamos muito, por isso que digo que é o maior programa de regularização fundiária da história de Belém. Então isto está marcando realmente a cidade, as pessoas sabem, valorizam. É um esforço grande do governo. O prefeito Edmilson Rodrigues tem um compromisso com essa pauta, um compromisso de campanha e que todos estamos felizes com os resultados.
Como funciona a parceria com o Governo do Estado do Pará para a realização do programa executado pela Codem?
Temos uma cooperação técnica com o governo do Estado do Pará. Através da Casa Civil do governo, quando o chefe era o deputado Iran Lima, começamos a construir um convênio para que o Estado pudesse repassar recursos para a Codem executar as ações e contratar empresas.
Quais são os requisitos para as famílias terem acesso ao programa?
Para que nós possamos enquadrar como de interesse social a Lei exige alguns requisitos, porque para a regularização fundiária, nos moldes da Lei 13.465 de 2017, o primeiro registro é gratuito e os requisitos básicos são: ter a posse de um imóvel efetivo na cidade; ter a posse do imóvel anterior a junho de 2016 (recorte da Lei); não ter outro registro em seu nome; e por último, ter a renda de até 5 salários mínimos.
Feito isso a família alcança os principais requisitos para a gratuidade do registro. Aí a Codem faz toda a instrução processual, faz o cadastramento, faz a geração da planta e do memorial descritivo do lote, instrui todo o processo, dá os pareceres e leva a cartório para o registro.
Qual o avanço que a Lei nos trouxe? A Lei trouxe um dispositivo no artigo 69 da Lei 13.465 e no artigo 87 do Decreto Lei 9310. A regularização fundiária sempre foi um processo muito complexo, envolve um profissional da ciência social, um da cartografia, um do direito, a presença de um despachante para dialogar no órgão fundiário e junto ao cartório. É uma rede complexa. O imóvel pode ter que cumprir uma determinada função ambiental, então existe uma série de requisitos que inviabiliza que uma família humilde de trabalhadores assalariados pague por isso. Então a Lei trouxe no artigo 69, para os aglomerados urbanos, integrados às cidades, anterior a dezembro de 1979, que o rito de regularização teria um procedimento simplificado.
Sabemos que todas as grandes metrópoles brasileiras já estavam consolidadas antes de dezembro 1979. Belém é uma cidade secular, tem 4 séculos. As cidades já estavam com os grupos urbanos consolidados antes de dezembro de 79. O que fizemos? Mapeamos Belém inteira, a cartografia da cidade para fazer este recorte. E aí priorizamos o trabalho nessas áreas para simplificar o procedimento, de acordo com a Lei. Com os cruzamentos feitos vimos como estavam as ocupações anterior a dezembro de 1979 e a situação das periferias, fomos em cima de onde as moradias eram consideradas subnormais ou precárias. Dirigimos a política pública para aquelas famílias mais humildes. Para aquelas famílias que não tem condição de acessar a regularização fundiária sem a presença do Estado.
Com isso bairros inteiros puderam ser regularizados?
Hoje temos bairros inteiros regularizados. Imagina uma metrópole onde se tem um bairro inteiro regularizado, nós fizemos isto em Belém. O Bairro de Fátima, por exemplo, é considerado 100% regularizado. Imagine entrar em um bairro popular, humilde, onde todas as quadras estão registradas e documentadas no cartório. As famílias da espacialização daquela quadra estão com as suas matrículas registradas com título de propriedade.
Tudo isso tem feito Belém ser destaque nacional no tema da regularização fundiária. Por quais motivos o senhor atribui este destaque? Qual é o diferencial do Terra da Gente?
O que levou a termos êxito no programa foram alguns requisitos. Primeiro interpretar bem os mecanismos que a Lei trouxe para poder chegar mais rápido ao registro. Assim a gente pode ter a leitura da Lei e interpretar o espírito que ela trouxe para garantir o registro para quem mais precisa. Em segundo lugar, conseguimos requalificar toda a base do procedimento administrativo da regularização fundiária.
Nós encurtamos os processos administrativos. Revisamos toda a metodologia do trabalho de campo, para deixá-lo enxuto e efetivo. Revisamos também toda a base tecnológica para deixarmos mais automático os procedimentos, utilizando softwares de georreferenciamento, drones, equipamentos mais modernos. Tudo isso deixou o procedimento ágil. E qualificamos a equipe, fizemos curso de regularização fundiária. Isso fez com que tivéssemos uma equipe tecnicamente preparada, tecnologicamente atualizada, assim como do ponto de vista administrativo. Tudo somado a um diálogo muito grande com movimentos populares, chamamos os movimentos sociais para o diálogo. São eles que fazem as nossas mobilizações, as audiências públicas. A participação popular é muito presente nesta ação.
Quais movimentos sociais auxiliam neste processo?
Temos movimentos tradicionais de luta pela reforma urbana, temos o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), a Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), a União Nacional de Movimentos Populares, a Central de Movimentos Populares (CMT), o pessoal do Povo Sem Medo. A Prefeitura de Belém também criou uma estrutura de participação popular, em que as pessoas foram eleitas conselheiras da cidade em todos os bairros. E tem o eixo da regularização fundiária.
A Prefeitura de Belém ainda desenvolveu uma escuta das principais demandas que deveriam ser priorizadas na cidade. No estilo do Orçamento Participativo. Essa escuta elegeu as principais demandas e a regularização fundiária foi a terceira principal demanda de Belém.
O ministro das Cidades, Jader Filho, já destacou a importância desse trabalho e disse que o programa pode ser usado como referência pelo governo federal para projetos na área da regularização no Brasil. Como seria isto?
Nós fizemos reuniões com o ministro Jader Filho, ele pediu para que escrevêssemos uma proposta. Já fizemos isto, demos entrada e protocolamos. Eu fiz algumas reuniões com a equipe técnica do ministro, me reuni com o secretário nacional de Políticas para os Territórios Periféricos Guilherme Simões, e já temos avançado na estratégia de implantação nacional dessa ação.
Portanto a estratégia a ser reproduzida tem como base o que foi falado sobre encurtar e dinamizar processos, com capacitação e novas tecnologias?
Exatamente. A estratégia do ministro é levar isso para outras metrópoles do Brasil. Regularização fundiária é uma dimensão técnica da ciência muito complexa, se você quiser responder todos os problemas ao mesmo tempo vamos perder o foco. Então temos que pegar o que a Lei trouxe de inovação, com as novas metodologias e tecnologias e com uma equipe técnica preparada e fazer o que é mais fácil. Quando se começa a regularizar o território do mais fácil para o mais difícil as coisas vão se organizando.
É preciso criar o clima de confiança na cidade. É preciso criar o clima de pertencimento e de identidade com o território, trazidos pela regularização fundiária. As famílias, uma vez tituladas, terão a segurança jurídica, ou seja, a paz. Com isso se começa a pacificar o território. Então todas aquelas ações de reintegração de posse, aquelas ameaças de despejo, aquele clima de insegurança acaba. Em segundo lugar, você começa a injetar na economia a possibilidade de negócios, porque você traz esse imóvel para a formalidade.
Com o documento de propriedade a família pode financiar uma reforma e melhorar a qualidade da casa. Isso injeta na economia recursos com a qualificação da moradia. Além disso, aquela família que sonha em empreender, abrir um pequeno negócio, por exemplo, uma padaria, uma oficina, um salão de beleza, um comércio, com o imóvel registrado como propriedade o banco pode dar em garantia essa segurança de operação de crédito. Ao mesmo tempo, muitos dos negócios não acontecem em uma cidade porque quem quer comprar um imóvel, ou quem quer vender, quando o imóvel não está registrado, o banco não consegue financiar esta venda e essa compra. Então todos os bancos públicos e privados, à medida que o imóvel tem o registro de propriedade já garante esta transação.
Outra vantagem de ter um território regularizado é que ele fica qualificado para a entrada dos serviços públicos. Por exemplo, a qualidade da luz em um território regularizado é diferente da qualidade de uma ocupação, assim como do saneamento, da urbanização, a presença de equipamentos públicos como creche, posto de saúde, escolas, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). A qualidade neste território regularizado é outra, pois se qualifica o acesso à cidade.
Além do Terra da Gente, quais outros projetos a Codem tem trabalhado?
A ONU (Organização das Nações Unidas), por meio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), elegeu 300 cidades de fomento à economia criativa, em diversos eixos. O Brasil possui 12 dessas cidades, sendo quatro da gastronomia e uma delas é Belém. Essa responsabilidade desse selo internacional de Cidade Criativa da Gastronomia, concedido pela Unesco, está sob responsabilidade da Codem.
Além disso, o principal mercado da cidade, na região central, o Mercado de São Brás, com mais de 110 anos, está sendo completamente reformado e requalificado. Já começamos a obra e está sob minha responsabilidade, a Codem que toca. É um símbolo da cidade. A obra está orçada em mais de R$ 110 milhões de reais.