Por que as domésticas incomodam tanto a Folha?
Volta e meia, a Folha de S.Paulo parece insinuar que os trabalhadores, especialmente aqueles mais organizados – os sindicalistas –, são sujeitos de segunda categoria. Daí a insistência com que o jornal tenta pregar o desmonte de qualquer tipo de legislação do trabalho, a retirada de direitos e mais ataques ao movimento sindical.
No editorial “Intenções e resultados” – que trata da PEC das Domésticas e foi publicado na edição de 27 de março –, esse preconceito escalou alguns graus. A Folha diz que a medida fracassou porque, após dez anos, “não aumentou a formalização” dos trabalhadores do serviço doméstico.
A PEC, lembra o editorial, garantiu direitos básicos à categoria, “como FGTS, seguro-desemprego, regime de 44 horas semanais, hora de almoço e auxílio-doença”. Para a Folha, porém, trata-se de “excesso de burocracia e aumento de gastos”. Afinal, por que as domésticas incomodam tanto a Folha?
Nos últimos anos, o jornal da família Frias apoiou a reforma trabalhista, a lei de terceirização irrestrita, a reforma da Previdência e outros retrocessos para a classe trabalhadora. Nenhuma dessas “modernizações” impulsionou a geração de emprego e renda, mas esse tipo de análise é dispensada.
Em resposta ao editorial, alguns leitores denunciaram a sutileza da Folha, que, a fim de defender menos e menos direitos, apela ao sofisma da formalização. “Aprovar direitos básicos (FGTS, jornada de 44 horas, horário de almoço) é o problema apontado pela Folha. Adotemos o trabalho escravo, então! Quem sabe a economia não decola!”, ironizou Marcos Dias Soares.
“Por que a Folha não mostra honestidade intelectual e avalia negativamente a reforma administrativa, visto q a informalidade cresceu, a massa salarial encolheu e a prometida propulsão da economia ninguém viu?”, questionou Paulo Werner. “Aí, nesse caso, a Folha empilha vírgulas e senões pra dizer que ainda devemos esperar pra avaliar os efeitos. A Folha sabe que a Abolição não cumpriu o prometido por décadas?”
Na segunda-feira (17), o jornal passou o vexame de ver representantes dos empregados domésticos darem um pino em suas próprias páginas. Um artigo assinado por Luiza Batista (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) e pelas advogadas Jéssica Pinheiro e Márcia Soares (ambas da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos) desmascarou a estratégia narrativa da Folha.
Dizem as autoras: a PEC das Domésticas é mera “conquista de direitos, que tardou muito em nosso sistema jurídico e tarda, ainda mais, em nosso pacto civilizatório”. O trabalho doméstico só foi reconhecido como categoria profissional em 1972, 30 anos depois da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). “A legislação ainda previa o direito a férias, mas não equiparava direitos de outros trabalhadores, como o FGTS e a jornada de trabalho”, lembra o texto.
Como 92% da força de trabalho no setor é feminina – e 67% é negra –, essas trabalhadoras “estão no epicentro da discriminação racial, de gênero e de classe”. O que elas pedem não é privilégio, nem burocracia – mas tão-somente um reconhecimento mínimo.
“A resistência em firmarmos o pacto civilizatório de reconhecimento dos direitos das trabalhadoras domésticas reside na herança escravocrata que persiste no imaginário social da branquitude. Para muitos, o lugar da trabalhadora doméstica é de ‘quase da família’, desde que seja servil e obediente e, sobretudo, sem direitos”, escrevem as autoras. Eis uma definição das mais precisas para a linha editorial da Folha.