"EUA provoca uma crise profunda no sistema centrado pela ONU", denuncia Lavrov | Foto:Michael M. Santiago/AFP

Em reunião do Conselho de Segurança da ONU realizada por motivo do Dia do Internacional do Multilateralismo, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, advertiu sobre “a crise profunda que afeta o sistema centrado na ONU”, cuja causa raiz, ele apontou, é o desejo de Washington de “substituir o direito internacional e a Carta da ONU” por sua “ordem baseada em regras”, na tentativa de deter o multilateralismo.

“Vamos jogar uma pá de cal: ninguém autorizou a minoria ocidental a falar em nome de toda a humanidade”, afirmou Lavrov, acrescentando que “medidas unilaterais ilegítimas” estão levando à fragmentação do comércio internacional.

“Ao impor uma ‘ordem baseada em regras’, seus autores rejeitam arrogantemente o princípio fundamental da Carta da ONU – a igualdade soberana dos Estados”, enfatizou o chanceler russo na reunião de segunda-feira (24). Ele denunciou a incursão da OTAN na Ásia-Pacífico, em busca de conter a República Popular da China, isolar a Rússia e minar o multilateralismo centrado na ASEAN.

Lavrov registrou como Washington proclamou “seu ‘direito’ a qualquer ação arbitrária”, de que são exemplos “o bombardeio ilegal da Iugoslávia de 1999, a vergonhosa invasão do Iraque de 2003, assim como a agressão contra a Líbia em 2011”. Cujo resultado é “a destruição de países, centenas de milhares de mortes, terrorismo desenfreado”.

O chefe da diplomacia russa chamou a deter os “duplos padrões”: “É óbvio para qualquer observador imparcial que o regime nazista de Kiev não pode de forma alguma ser considerado como representante dos habitantes dos territórios que se recusaram a aceitar os resultados do sangrento golpe de Estado de fevereiro de 2014 e contra os quais os golpistas desencadearam uma guerra por isso”.

Para deter a guerra desencadeada pelo golpe de Estado no leste da Ucrânia, foram feitos esforços multilaterais no interesse de uma solução pacífica, “consubstanciada em uma resolução do Conselho de Segurança que aprovou por unanimidade os acordos de Minsk”, lembrou Lavrov. Kiev e seus mestres ocidentais recentemente “admitiram cinicamente que nunca iriam cumpri-los, mas apenas queriam ganhar tempo para bombear a Ucrânia com armas contra a Rússia”.

“Nós honestamente dissemos pelo que e por quem estamos lutando”, destacou Lavrov: “eliminar as ameaças criadas pela OTAN durante anos à nossa segurança diretamente em nossas fronteiras e proteger as pessoas que foram privadas de seus direitos proclamados por convenções multilaterais, protegê-las de ameaças diretas de extermínio e expulsão declaradas publicamente pelo regime de Kiev dos territórios onde seus ancestrais viveram por séculos”.

O chanceler russo concluiu apontando que “é nossa responsabilidade comum preservar as Nações Unidas como um exemplo duramente conquistado de multilateralismo e coordenação da política mundial” e chamou, ainda, a democratizar o Conselho de Segurança, após advertir que, como nos anos da Guerra Fria, “nos aproximamos de uma linha perigosa”, dada a agressão financeira e econômica do Ocidente e abandono, por Washington e seus aliados, da diplomacia, e clamando por confronto ‘no campo de batalha’.

Na íntegra, o discurso de Lavrov.

É simbólico que estejamos realizando nosso encontro no Dia Internacional do Multilateralismo e Diplomacia para a Paz, que foi incluído no calendário de datas significativas pela resolução da Assembleia Geral da ONU em 12 de dezembro de 2018.

Em duas semanas celebraremos o 78º aniversário da Vitória na Segunda Guerra Mundial. A derrota da Alemanha nazi, para a qual o meu país deu uma contribuição decisiva com o apoio dos Aliados, lançou as bases da ordem internacional do pós-guerra. Cuja base legal é a Carta da ONU, e nossa própria organização, corporificando o verdadeiro multilateralismo, adquiriu um papel central e coordenador na política mundial.

Por quase 80 anos de sua existência, a ONU vem cumprindo a missão mais importante que lhe foi confiada pelos pais fundadores. Durante várias décadas, o entendimento mútuo básico dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança sobre a supremacia dos propósitos e princípios da Carta garantiu a segurança global. E, assim, criou as condições para uma cooperação verdadeiramente multilateral, regulada pelas normas de direito internacional universalmente reconhecidas.

Agora, o sistema centrado na ONU está passando por uma crise profunda. A causa raiz e o desejo de membros individuais de nossa organização de substituir o direito internacional e a Carta da ONU por algum tipo de “ordem baseada em regras”. Ninguém viu essas “regras”, nem foram objeto de negociações internacionais transparentes. Elas são inventadas e aplicadas para contrariar os processos naturais de formação de novos centros de desenvolvimento independentes, que são a manifestação objetiva do multilateralismo. Eles estão tentando ser contidos por medidas unilaterais ilegítimas, incluindo cortar o acesso à tecnologia moderna e serviços financeiros, ser forçados a sair das cadeias de suprimentos, confisco de propriedade, destruição de infraestrutura crítica de concorrentes e manipulação de normas e procedimentos universalmente aceitos. Como resultado, a fragmentação do comércio mundial.

Em uma tentativa desesperada de afirmar seu domínio por meio da punição dos recalcitrantes, os Estados Unidos partiram para a destruição da globalização, que por muitos anos foi apresentada como o bem maior de toda a humanidade, servindo ao sistema multilateral da economia mundial. Washington e o resto do Ocidente que lhe obedece usam suas “regras” sempre que necessário para justificar passos ilegítimos contra aqueles que constroem suas políticas de acordo com o direito internacional e se recusam a seguir os interesses egoístas do “bilhão dourado”. Aqueles que discordam são colocados nas “listas negras” de acordo com o princípio: “quem não está conosco está contra nós”.

Há muito se tornou “desconfortável” para os colegas ocidentais negociar em formatos universais, como a ONU. Para fundamentar ideologicamente a política de minar o multilateralismo, pôs-se em circulação o tema da unidade das “democracias” em oposição às “autocracias”. Além das “cúpulas pela democracia”, cuja composição é determinada pelo autoproclamado hegemon, estão sendo criados outros “clubes de elite” que contornam a ONU.

Summits for Democracy, Alliance for Multilateralism, Global Partnership for Artificial Intelligence, Global Coalition for Media Freedom, Paris Call for Trust and Security in Cyberspace – todos esses e outros projetos não inclusivos são projetados para minar as negociações sobre tópicos relevantes sob os auspícios da ONU, impor conceitos e soluções não consensuais que sejam benéficas para o Ocidente. Primeiro, eles concordam em algo secretamente, em um círculo restrito, e depois apresentam esses acordos como “a posição da comunidade internacional”. Vamos chamar uma pá de pá: ninguém permitiu que a minoria ocidental falasse em nome de toda a humanidade. Devemos nos comportar decentemente e respeitar todos os membros da comunidade internacional.

IGUALDADE SOBERANA DOS ESTADOS

Ao impor uma “ordem baseada em regras”, seus autores rejeitam arrogantemente o princípio fundamental da Carta da ONU – a igualdade soberana dos Estados. A quintessência do “complexo de exclusividade” foi a declaração “orgulhosa” do chefe da diplomacia da UE, J. Borrell, de que “a Europa é um Jardim do Éden e o resto do mundo é uma selva”. Citarei também a Declaração Conjunta OTAN-UE de 10 de Janeiro deste ano, que diz: “O Ocidente Unido” utilizará todos os instrumentos econômicos, financeiros, políticos e – presto especial atenção – militares à disposição da OTAN e da UE para garantir os interesses do “nosso um bilhão”.

O “Ocidente coletivo” decidiu remodelar “para si” os processos de multilateralismo no nível regional. Não faz muito tempo, os Estados Unidos pediram o renascimento da Doutrina Monroe, exigiram que os países latino-americanos limitassem os laços com a Federação Russa e a República Popular da China. Essa linha, no entanto, esbarrou na determinação dos países da região de fortalecer suas próprias estruturas multilaterais, principalmente a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), ao mesmo tempo em que defendiam seu legítimo direito de se estabelecerem como um dos pilares do mundo multipolar. A Rússia apóia totalmente tais aspirações justas.

Agora, forças significativas dos Estados Unidos e seus aliados foram mobilizadas para minar o multilateralismo na região da Ásia-Pacífico, onde um sistema aberto bem-sucedido de cooperação econômica e de segurança se desenvolveu em torno da ASEAN por décadas. Esse sistema possibilitou o desenvolvimento de abordagens consensuais que atenderam tanto os “dez” membros da ASEAN quanto seus parceiros de diálogo, incluindo Rússia, China, Estados Unidos, Índia, Japão, Austrália e República da Coreia, garantindo um verdadeiro multilateralismo inclusivo. Ao apresentar a Estratégia Indo-Pacífico, Washington estabeleceu um curso para o colapso dessa arquitetura estabelecida.

OTAN GLOBAL

Na cimeira do ano passado em Madrid, a NATO, que sempre convenceu a todos da sua “tranquilidade” e do caráter exclusivamente defensivo dos seus programas militares, declarou a sua “responsabilidade global”, a “indivisibilidade da segurança” no Euro-Atlântico e na chamada região Indo-Pacífica. Ou seja, agora a “linha de defesa” da OTAN (como uma Aliança defensiva) está se deslocando para as costas ocidentais do Oceano Pacífico.

Abordagens de bloco que minam o multilateralismo centrado na ASEAN se manifestam na criação da aliança militar AUKUS, na qual Tóquio, Seul e vários países da ASEAN estão sendo empurrados. Sob os auspícios dos Estados Unidos, estão sendo criados mecanismos para intervir em questões de segurança marítima com vistas a garantir os interesses unilaterais do Ocidente nas águas do Mar da China Meridional.

J. Borrell, que já citei hoje, prometeu ontem enviar forças navais da UE para esta região. Não se esconde que o objetivo da Estratégia do Indo-Pacífico é conter a República Popular da China e isolar a Rússia. É assim que os colegas ocidentais entendem o “multilateralismo efetivo” na região da Ásia-Pacífico.

“CARTA DA ONU AMEAÇA WASHINGTON”

Após a dissolução do Pacto de Varsóvia e a retirada da União Soviética da cena política, começaram a surgir esperanças na concretização dos princípios de um multilateralismo genuíno, sem linhas divisórias, no espaço euro-atlântico. Mas, em vez de liberar o potencial da Organização pela Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em uma base coletiva igualitária, os países ocidentais não apenas mantiveram a OTAN, mas, contrariando suas promessas juramentadas, traçaram um curso para a absorção descarada do espaço adjacente, incluindo territórios onde os interesses vitais da Rússia sempre existiram e continuarão existindo.

Como o então secretário de Estado dos EUA, John Baker, relatou ao presidente George W. Bush pai: “A principal ameaça à OTAN é a OSCE”. Eu acrescentaria por conta própria que hoje tanto a ONU quanto os requisitos de sua Carta também representam uma ameaça às ambições globais de Washington.

A Rússia tentou pacientemente chegar a acordos multilaterais mutuamente benéficos com base no princípio da indivisibilidade da segurança, que foi solenemente proclamado ao mais alto nível nos documentos das cimeiras da OSCE em 1999 e 2010.

É direta e inequivocamente escrito em preto e branco que ninguém deve fortalecer sua segurança à custa da segurança de outros, e nenhum estado, grupo de estados ou organização pode ter a responsabilidade primária de manter a paz na região da Organização ou considerar qualquer parte da região da OSCE como sua esfera de influência.

IUGOSLÁVIA-IRAQUE-LÍBIA

A OTAN não deu a mínima para essas obrigações dos presidentes e primeiros-ministros de seus países membros e passou a agir exatamente ao contrário, proclamando seu “direito” a qualquer ação arbitrária.

Um exemplo gritante é o bombardeio ilegal da Iugoslávia em 1999, inclusive com o uso de ogivas de urânio depletado, que posteriormente causou um surto de doenças oncológicas – tanto entre os cidadãos sérvios quanto entre os militares da OTAN.

J. Biden era então senador e falou para as câmeras, não sem orgulho, que ele pessoalmente pediu o bombardeio de Belgrado e a destruição de todas as pontes no rio Drina. Agora, o embaixador dos EUA em Belgrado K. Hill, por meio da mídia, está pedindo aos sérvios que “virem a página” e “parem de se ofender”. Os Estados Unidos acumularam uma vasta experiência sobre “pare de se ofender”.

Afinal, o Japão há muito se mantém timidamente silencioso sobre quem bombardeou Hiroshima e Nagasaki. Nem uma palavra sobre isso nos livros escolares. Recentemente, em uma reunião do G-7, o secretário de Estado dos Estados Unidos, A. Blinken, lamentou pateticamente o sofrimento das vítimas daqueles atentados, mas não mencionou quem os organizou. Essas são as “regras”. E ninguém se atreve a discutir.

Desde a Segunda Guerra Mundial, houve dezenas de aventuras militares criminosas de Washington sem qualquer tentativa de assegurar a legitimidade multilateral. Por que, se existem “regras” que ninguém conhece?

A vergonhosa invasão do Iraque pela coalizão liderada pelos EUA em 2003 foi realizada em violação da Carta da ONU, assim como a agressão contra a Líbia em 2011. O resultado é a destruição do estado, centenas de milhares de mortes, terrorismo desenfreado.

REVOLUÇÕES COLORIDAS

A intervenção dos EUA nos assuntos dos estados pós-soviéticos foi a violação mais grosseira da Carta da ONU. “Revoluções coloridas” foram organizadas na Geórgia e no Quirguistão, um golpe de estado sangrento em Kiev em fevereiro de 2014. Na mesma linha, há tentativas de tomar o poder pela força na Bielo-Rússia em 2020.

Os anglo-saxões, que lideraram com confiança todo o Ocidente, não apenas justificam todas essas aventuras criminosas, mas também ostentam sua linha de “promover a democracia”.

Mas novamente de acordo com suas próprias “regras”: Kosovo – reconhece a independência sem qualquer referendo; Crimeia – não reconhece (embora tenha havido um referendo); Não toque nas Falklands/Malvinas, afinal, houve um referendo lá (como afirmou recentemente o ministro das Relações Exteriores britânico, John Cleverley). Engraçado.

DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS

A fim de rejeitar a duplicidade de pesos e pesos, pedimos a todos que se guiem pelos acordos consensuais acordados no âmbito da Declaração da ONU de 1970 sobre os Princípios do Direito Internacional que continua em vigor. Proclama claramente a necessidade de respeitar a soberania e a integridade territorial dos Estados que “observem o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos e tenham governos que representem todas as pessoas que vivem em um determinado território”.

É óbvio para qualquer observador imparcial que o regime nazista de Kiev não pode de forma alguma ser considerado como representante dos habitantes dos territórios que se recusaram a aceitar os resultados do sangrento golpe de Estado de fevereiro de 2014 e contra os quais os golpistas desencadearam uma guerra por isso.

Fonte: Papiro