Desdolarização, o fantasma que ameaça o Império
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assombrou os Estados Unidos ao falar em alto e bom som o que muitos líderes cogitam de forma mais reservada e discreta. Em viagem à China, na semana passada, Lula propôs a criação de uma moeda que faça contraponto ao dólar no mercado financeiro global.
A princípio, esse novo sistema monetário seria restrito aos Brics – o bloco de países “emergentes” formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Enquanto a ideia não sai do papel, chineses e brasileiros já começaram a fazer transações em moeda local.
Os últimos anos foram de um e outro contratempo para os membros dos Brics. O Brasil patinou na economia sob o governo Jair Bolsonaro (PL). A China fez a opção por restrições mais severas para impedir o avanço da Covid-19 na população, o que comprometeu o crescimento do país. A Rússia enfrenta recessão devido aos impactos da guerra na Ucrânia e às sanções do Ocidente, lideradas pelos Estados Unidos.
Ainda assim, desde 2020 o PIB dos cinco países dos Brics supera o PIB do ultrapassado G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Canadá). Por sinal, a própria ascensão da China como segunda economia do Planeta já era suficiente para anular a ideia de que o G7 abrange as maiores potências econômicas. Não mais.
O dólar dá as cartas no mundo desde a Conferência de Bretton Woods, em 1944, na fase derradeira da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). O britânico John Maynard Keynes queria uma moeda comercial internacional, no que se convencionou a chamar de “Plano Keynes”. O norte-americano Harry Dexter White defendia um sistema de padrão-ouro, baseado no dólar.
A proposta de Keynes parecia fazer mais sentido num mundo em busca de paz e estabilidade, sem hegemonias. Mas os Estados Unidos fizeram valer sua força. White – que viria a morrer em 1948 – ainda se empenhou nos últimos anos de vida para viabilizar o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial. Assim se sedimentou a modelagem que pauta o comércio internacional há 80 anos.
Mas chamada “desdolarização” está na ordem do dia – e não é apenas Lula que indica essa tendência. “Todo esse poder hegemônico do dólar pode estar com os dias contados”, resume Sueli Vasconcelos, professora de Geografia Socioambiental e Geopolítica em Minas Gerais. “Mais de 25 países já negociam com a China utilizando o yuan, a moeda chinesa. Rússia e Índia, duas economias emergentes gigantescas, já realizaram as primeiras trocas comerciais com moedas distintas do dólar.”
Para Sueli, a “postura” dos Estados Unidos contribuiu para a crise da moeda norte-americana. Qual postura? A de “transformar seu poderio em uma contínua forma de subjugar os demais países, com sanções cada vez mais severas e bloqueio dos ativos internacionais daqueles que contrariam os status quo por eles defendido, como é o caso da Venezuela, Rússia, Irã, Afeganistão, Líbia etc”.
Em Pequim, Lula escancarou a disposição do Brasil em fugir do dólar. Além das transações em moeda local, o País concordou em usar um sistema de pagamento chinês nessa relação. A tendência é que o Brasil passe a acumular reservas em yuan. De resto, a proposta de uma moeda dos Brics, embora embrionária, já soa como um fantasma a ameaçar o Império norte-americano.
“Toda noite me pergunto por que todos os países estão obrigados a fazer o seu comércio lastreado no dólar. Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda?”, declarou Lula em seu discurso na posse da ex-presidenta Dilma Rousseff no Banco dos Brics. “Por que não temos o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda, depois que desapareceu o ouro como paridade?”
Em entrevista ao canal chinês CCTV, o presidente tentou minimizar o ruído. De acordo com Lula, os norte-americanos “têm uma preocupação com qualquer coisa nova que se crie”, seja banco, seja moeda. “Eles acham que queremos acabar com o dólar como moeda de referência para o comércio exterior. Foi assim quando se criou o euro na Europa – os Estados Unidos ficaram muito ofendidos”, lembrou Lula.
Para o presidente, “um país do tamanho da China e do tamanho do Brasil não precisa negociar com base no dólar. Você pode ter uma moeda criada, que pode ser organizada pelos bancos centrais dos dois países e a gente fazer a nossa troca comercial nas nossas moedas. Isso é uma novidade – é uma coisa a ser estudada, a ser pensada”.
O risco de uma debandada do dólar não é apenas comercial, conforme expôs o jornalista Jamil Chade em sua coluna no UOL. “No centro do debate na diplomacia americana está seu temor de que, se o plano do Brics vingar, o dólar não apenas deixará de ser hegemônico. Mas, acima de tudo, o mundo terá uma alternativa para driblar eventuais sanções financeiras impostas pelos americanos”, registrou o colunista.
Não está clara a velocidade da transição. “É evidente que isso não ocorrerá de forma sutil. Os norte-americanos vão reagir com ferocidade para evitar que tal cenário se construa de fato”, alerta Sueli Vasconcelos. “Visivelmente, há em curso uma ‘desdolarização’ global, porém lenta e relativamente limitada”, emenda Otaviano Canuto, ex-diretor do Banco Mundial.
O fato é que o fantasma da bipolaridade monetária – ou talvez multipolaridade – não para de crescer. O fortalecimento do yuan já é irrefreável, e uma eventual moeda dos Brics vai acelerar a desdolarização. Bretton Woods vai ficar para trás.