PF quer saber do segundo pacote de joias recebido por Bolsonaro
Só piora a situação de Jair Bolsonaro e outros envolvidos no transporte de presentes valiosos trazidos de forma ilegal da Arábia Saudita. Agora, a Folha de S. Paulo teve acesso a um recibo oficial entregue à Presidência da República, em novembro de 2022, comprovando a entrada de outro pacote de joias não interceptado pelos auditores fiscais do aeroporto de Guarulhos.
As joias entregues ao “acervo pessoal” do ex-presidente Jair Bolsonaro, teriam vindo no mesmo voo de outubro de 2021, em que foram apreendidas as joias avaliadas em R$ 16,5 milhões, destinadas à primeira-dama Michelle Bolsonaro. Não se sabe porque aquelas também não foram identificadas e apreendidas.
A Receita Federal decidiu investigar a entrada deste segundo pacote. Como já existe inquérito da Polícia Federal e do Ministério Público Federal em torno dos diamantes de Michelle, a investigação deve apurar as circunstâncias do novo pacote denunciado, também.
Tumulto na alfândega
Naquele dia 26 de outubro de 2021, a fiscalização interceptou o pacote com anéis, colar e um relógio com diamantes avaliado em 16,5 milhões de reais. Ele estava na bagagem de um assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, conforme revelou o Estadão. O ministro informou que se tratava de um presente do príncipe árabe à então primeira-dama.
À Folha, Albuquerque disse ter informado aos auditores fiscais ainda no aeroporto de Guarulhos sobre a mala contendo o segundo pacote de joias. Esta afirmação exige apuração da verdade sobre o que ocorreu. O Ministério também teria pedido orientações à Receita e à Presidência sobre o pacote recebidos em sua sede. O estojo de jóias teria ficado mais de um ano lá, até a entrega a Bolsonaro no dia 29 de novembro passado.
O segundo pacote, com relógio, caneta, abotoaduras, anel e uma espécie de rosário – todas da marca suíça de diamantes Chopard -, estava em posse de outro membro da comitiva do governo. No dia em que a comitiva estava no Oriente Médio, Jair Bolsonaro esteve numa recepção na Embaixada da Arábia Saudita, em Brasilia.
Investigação
Os órgãos investigatórios envolvidos no caso do primeiro pacote denunciado já estão envolvidos na apuração do novo escândalo. Começa com a própria Receita Federal, que investiga como o estojo de joias passou pela alfandega sem ser percebido. O Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF), por sua vez, já estão com inquérito solicitado, em andamento, com reforço de pedido do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.
Segundo a Receita, “o fato pode configurar, em tese, violação da legislação aduaneira também pelo outro viajante, por falta de declaração e recolhimento dos tributos”.
“Diante dos fatos, a Receita Federal tomará as providências cabíveis no âmbito de suas competências para a esclarecimento e cumprimento da legislação aduaneira, sem prejuízo de análise e esclarecimento a respeito da destinação do bem.”
O ministro Flávio Dino enviou ofício à PF em que pede que “sejam adotadas as medidas investigativas legalmente cabíveis”. “No caso, havendo lesões a serviços e interesses da União, assim como à vista da repercussão internacional do itinerário em tese criminoso, impõe-se a atuação investigativa da Polícia Federal”, diz trecho do ofício.
Técnicos do Receita já se reuniram com representantes do MPF na tarde desta segunda (6) para compartilhamento de informações disponíveis sobre a entrada das joias.
Procedimento legal
Nada disso teria ocorrido se Bolsonaro tivesse comprado as joias, enviado por transportadora, em vez de na mochila de um passageiro, declarado e comprovado com documentação e pago os impostos devidos, como fazem os demais brasileiros. Para isso, seria pago o tributo de 50% sobre o valor estimado do produto, o que daria certa de R$ 8 milhões em impostos.
Considerando que houve tentativa de sonegação, ao entrar de forma irregular na bagagem de terceiros, teria que acrescentar a multa de outros 50%—ou seja, pagando o dobro dos R$ 16,5 milhões, avaliados pela Receita.
Também não haveria nada, se tivesse ganhado o presente e declarado como patrimônio da União, portanto, como acervo do Estado brasileiro, e não dele. Tudo seria documentado, seria imune a tributação e pertenceria à União.
Nestes casos, os escândalos seriam outros. Afinal, o gasto do presidente da República e sua esposa com diamantes seria muito alto, assim como o presente seria imoral. O que o presidente que comanda os rumos Petrobras, como acionista majoritário, teria a oferecer em troca de algo tão precioso a um príncipe árabe, dono das maiores reservas de petróleo do mundo?
Não declarar como bem público as joias milionárias contraria frontalmente entendimento fixado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), desde 2016. Depois desse entendimento, os próprios presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff tiveram que devolver centenas de presentes ao patrimônio comum da Presidência da República.
Entende-se que, se o presidente é presenteado com um objeto de valor inestimável, como uma obra de arte, por exemplo, ele os recebe porque exerce esta condição pública de presidente da República. Entende-se também que o presente foi dado a partir de recursos de um cofre público estrangeiro para alguém que está sendo financiado por dinheiro público, também, portanto o mandatário não pode incorporar o objeto como utilitário pessoal. Estes são alguns dos argumentos considerados pelo entendimento do TCU.
Foi baseado nesse entendimento, que, em sessão de 1º de março deste ano, o TCU julgou caso correlato e aprovou o acórdão 326/2023 orientando comitiva do governo Bolsonaro que foi ao Qatar em 2019 a entregar para o patrimônio público brasileiro relógios das grifes Hublot e Cartier (no valor de até R$ 53 mil cada um) que receberam de presente.
O tribunal considerou que o recebimento dos presentes contraria os princípios da moralidade e razoabilidade. Entre os que receberam os relógios de grife estão os ex-ministros Gilson Machado (Turismo) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS). Não é razoável que um agente público receba presentes de alto valor, de autoridades estrangeiras, para usufruto pessoal.
Carteiradas bolsonaristas
No caso da Receita Federal, a questão é bem mais simples e técnica. Pela lei, bens adquiridos no exterior que tenham valor superior a US$ 1.000 (pouco mais de R$ 5.000) precisam ser declarados na entrada no Brasil, sofrendo tributação de 50% sobre o excedente. Apesar disso, a informação dada na chegada, de que as joias eram da primeira-dama, complicou a tramitação, tirando-a do âmbito comum do mero contrabando.
A Alfândega de Guarulhos chegou a explicar tudo em ofício enviado ao gabinete de Jair Bolsonaro, dando-lhe a opção de tratar os objetos como “regime de importação comum”, desde o primeiro momento, provar a doação feita pelas autoridades árabes e declarar a importação do material para o acervo da União, o que não resulta em cobrança de tributação.
Isso nunca foi feito, de acordo com a Receita. Em vez disso, houve tentativas de desembaraço das joias por meio de “carteiradas”, de acordo com reportagem do Estadão, que revelou o caso. A carteirada é considerada um abuso de autoridade para benefício pessoal. Para isso, foram envolvidos três ministérios (Economia, Minas e Energia e Relações Exteriores) e militares.
A pressão sobre o órgão aduaneiro poderia envolver acordos suspeitos. O então secretário especial da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, que poderia assumir o risco sobre a liberação das joias, acabou nomeado em 30 de dezembro para a Embaixada do Brasil em Paris, uma das mais cobiçadas por diplomatas, o que foi revogado posteriormente no governo Lula. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que se sentiu “desconfortável” com a criação de cargos para adidos da Receita Federal no exterior no fim do governo Bolsonaro.
(por Cezar Xavier)