Monitoramento de celulares pela Abin de Bolsonaro incomodou até agentes
Durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) operou um sistema secreto de monitoramento da localização de cidadãos em todo o território nacional, segundo documentos obtidos pelo jornal O Globo e relatos de servidores.
A ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial ou legalidade, monitorar os passos de milhares de proprietários de celulares, a partir do número de um contato telefônico desejado.
A prática gerou incômodo internamente, conforme se percebeu que era usada contra os próprios agentes. Além disso, era sabido que a agência não possui autorização legal para acessar dados privados sem uma justificativa sólida autorizada. Os servidores relataram que a ferramenta era usada sem qualquer controle, relatório ou discriminação.
Nem a Abin ou qualquer envolvido com a ferramenta, seja fabricante, representante ou mesmo o ex-chefe do órgão, Alexandre Ramagem, comentaram a respeito, alegando “sigilo contratual”. Quem falou, o fez sob condição de anonimato.
Alvos preferenciais
Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), a ferramenta, chamada “FirstMile” permite rastrear uma pessoa a partir de dados transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões. Com isso, a espionagem do governo conseguia saber o histórico de todos os deslocamentos de uma pessoa e criar “alertas” de movimentações de um alvo.
Na prática, qualquer celular poderia ser monitorado sem uma justificativa oficial. A possibilidade de monitoramento de agentes do próprio governo, empresários e políticos, além e alvos óbvios de movimentos sociais ou partidos de esquerda mostra que ninguém está protegido deste tipo de vigilância. Essas desconfianças geraram um procedimento interno para apurar os critérios de utilização e a regularidade da contratação dessa tecnologia de espionagem.
A agência comprou o software por R$ 5,7 milhões, com dispensa de licitação, no fim de 2018, ainda na gestão de Michel Temer e foi utilizada ao longo do governo Bolsonaro até meados de 2021. Como não há legislação específica proibindo a prática, o programa era utilizado sem qualquer controle protocolar.
Repercussão
A lei que regula a agência, de 1999, não prevê entre suas atividades o monitoramento de celulares nem a vigilância da geolocalização de determinados alvos. Pode estar violando, portanto, o direito à vida privada, à intimidade e à liberdade de locomoção e até colocando em risco a vida do cidadão.
Por outro lado, existem indícios divulgados na imprensa de que a Abin, assim como a Polícia Federal, teriam sofrido interferências e atuado para proteger Bolsonaro e sua família em casos como do escândalo das rachadinhas, levantamento de informações preventivas sobre negócios envolvendo o filho Jair Renan e preparação de dossiê sobre irregularidades de governadores durante a pandemia para desviar o foco da CPI da Covid.
Todos estes “serviços” denunciados não constam de relatórios oficiais, o que leva à montagem de uma estrutura paralela de espionagem a favor de Bolsonaro como indivíduo e não como presidente da República.
Segundo o senador Esperidião Amin (PP-SC), ex-presidente da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional, o tema revela a necessidade de atualização do sistema de inteligência. A CCAI é o âmbito mais adequado de fiscalização da atuação da Abin.
Presidente da Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado e vice-presidente da Comissão Mista de Controle de Atividade de Inteligência (CCAI), Renan Calheiros (MDB-AL) afirmou que trabalhará nos dois colegiados para investigar o caso.
“A CCAI vai entrar nesse caso com uma enorme lupa, atenta à privacidade dos cidadãos e cidadãs. A se confirmar as revelações, teremos uma das mais graves violações constitucionais contra a privacidade das pessoas. Os responsáveis deverão ser punidos”, disse Calheiros.
“No âmbito da CCAI e CRE quero reestruturar a Abin para se transformar uma agência de inteligência profissional, efetiva, moderna e útil ao estado, não mais um ajuntamento de bisbilhotice e arapongagem, muitas vezes políticas. As democracias precisam dos serviços de inteligência, mas dispensam a a xeretice”, acrescentou Renan em entrevista ao Globo.
Ele disse ainda que irá agendar a sabatina do indicado para a direção da Abin pelo governo Lula a, o delegado federal aposentado Luiz Fernando Corrêa. “Espero que ele responda adequadamente a esse e outros questionamentos que seguem sem respostas convincentes”.
Mais cedo, o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), afirmou que tomará medidas para apurar quem foram as pessoas monitoradas pela Abin. O parlamentar também defendeu a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
A líder do PCdoB na Câmara dos Deputados, Jandira Feghali (RJ) apontou este como mais um escândalo na lista dos Bolsonaros. “A quem interessava essa devassa ilegal?”, questiona ela.
O líder do PT na Câmara, ZecaDirceu (PR), defendeu que a Justiça e os órgãos de fiscalização como a Controladoria Geral da União (CGU) investiguem a Agência Nacional de Inteligência (Abin).
“É uma denúncia gravíssima, é preciso fazer uma investigação rápida e apresentar denúncia para que os envolvidos sejam, de forma muito dura, punidos”, disse o deputado. “Trata-se de um atentado contra a liberdade individual, prática abusiva da época da ditadura militar; muito triste ainda termos que conviver com situações como essas”.
Zeca Dirceu salientou que o governo Lula, em sintonia com o que pensa o conjunto dos parlamentares da Bancada do PT, mostrar estar totalmente correto ao defender a desmilitarização da Abin, para que passe ao controle civil.
“Nós sempre estivemos certos ao defender tirar dos militares o comando da Abin. Que bom que agora temos um civil no comando e nos dá a segurança de que fatos como esses não vão se repetir”, comentou o parlamentar.
(por Cezar Xavier)