Empresa que usa trabalho análogo ao escravo não deve receber recurso público
O estarrecedor caso de 207 homens resgatados de trabalho análogo ao escravo na Serra Gaúcha, envolvendo vinícolas bem sucedidas e tidas como modernas, trouxe ao debate nacional a necessidade de se implementar mecanismos que coíbam esse tipo de exploração aviltante e também penalizem, nas mais diversas frentes do setor público, as empresas envolvidas.
Sabe-se que embora o problema seja antigo — fruto da herança escravista e da profunda desigualdade brasileira —, nos últimos anos, sob Michel Temer (MDB) e, sobretudo, no governo de Jair Bolsonaro (PL), a reforma trabalhista, a precarização das relações de trabalho, a crise social e econômica, o desmonte das políticas e estruturas públicas contribuíram diretamente para piorá-lo.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sinalizado que vai enfrentar essa situação com medidas que podem ir desde o fortalecimento das estruturas de fiscalização até a proibição de financiamento a empresas envolvidas via bancos públicos como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Desde fevereiro de 2008, diz o site do banco, “os contratos de financiamento do BNDES incluem a chamada Cláusula Social, que explicita o combate à discriminação de raça ou de gênero, ao trabalho infantil e ao trabalho escravo no Brasil. O respeito a cláusulas sociais já era condição prévia para a contratação de financiamento no Banco. Mas, a partir de então, o veto a práticas de discriminação passou a integrar, de forma explícita, os contratos do BNDES”.
Tal cláusula deverá embasar os próximos passos do banco em relação às vinícolas gaúchas e outras empresas que desrespeitem esses princípios. Segundo noticiado pelo Brasil de Fato, as vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi têm ao menos 18 empréstimos ativos junto ao banco, que somam R$ 66,2 milhões. “Ao todo, essas mesmas empresas obtiveram 147 empréstimos com recursos do BNDES, no valor total de R$ 148 milhões. Desse total, 129 empréstimos, totalizando R$ 82 milhões, já foram liquidados”, diz a reportagem.
Ao UOL, Tereza Campello, ex-ministra e atual diretora do BNDES, ressaltou que o caso da Serra Gaúcha “é uma vergonha, uma tragédia”, mas justamente por seu impacto poderá levar a mudanças mais radicais para coibir a prática. “Isso é o atraso, é o país do século 19, esse país tem que ser superado com rigor do ponto de vista trabalhista, do ponto de vista de voltar a ter uma justiça do trabalho valorizada, ter fiscalização do trabalho; o MTE foi completamente desorganizado, deixou de existir, as equipes de fiscalização foram desorganizadas e passaram a ser paulatinamente desautorizadas (no governo passado)”.
Em mais de uma ocasião, Tereza se colocou contra a concessão de empréstimos para empresas com esse tipo de prática e salientou que “o trabalho escravo ‘moderno’ tem que ser combatido e não é com crédito que se combate”.
Também explicou que a situação de empréstimos e financiamentos nesse episódio específico está sendo analisada para a tomada de medidas, que dependem também dos desdobramentos do caso no âmbito jurídico e legal. “Trabalho escravo é inaceitável, então, é preciso criar mecanismos suficientes para não só punir como também evitar que qualquer dinheiro público ou do banco se envolva nesse tipo de operação”.