“Vinho tinto de sangue”: o uso de mão de obra análoga à escrava
O mais recente flagrante de uso de trabalho análogo à escravidão, desta vez ocorrido na Serra Gaúcha, mostra o quanto o capitalismo em geral, e o brasileiro em particular, se utiliza de práticas abomináveis e arcaicas para auferir lucro ao mesmo tempo em que, cinicamente, tenta se vender como moderno e avançado.
Ao todo, 206 homens foram resgatados de condições degradantes de trabalho e de vida durante operação realizada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego e a Polícia Federal na última quarta-feira (22), na cidade de Bento Gonçalves (RS).
A vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi — que figuram entre as mais importantes do país e são reverenciadas pela mídia e a elite locais como exemplos de empresas gaúchas bem-sucedidas — foram as usuárias finais da mão de obra explorada de forma desumana para a colheita e descarregamento das uvas.
Em 2022, a Aurora faturou R$ 756 milhões, R$ 10 milhões a mais do que no ano anterior, valor atingido após o quarto ano consecutivo de recorde, de acordo com o jornal O Pioneiro, de Caxias do Sul. A Salton também se superou, obtendo faturamento de R$ 500 milhões em 2022, segundo a Forbes, assim como a Cooperativa Garibaldi, que faturou R$ 265 milhões no ano passado, informação publicada pela Isto É Dinheiro.
Os trabalhadores que forneciam sua mão de obra a essas empresas altamente lucrativas relataram que além dos atrasos nos salários e das jornadas extenuantes — que chagavam a ir das 4h às 21h —, ainda eram obrigados a comer alimentos estragados; alguns contaram terem sido vítimas de ameaças e torturas, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta.
Além disso, os trabalhadores foram coagidos a permanecer no local, em alojamentos precários, sob pena de pagamento de multa por quebra do contrato, e eram obrigados a comprar itens básicos a preços muito acima do mercado. Eles também contaram que foram prometidos salário de R$ 4 mil mensais e boas condições de serviço, o que passou longe de acontecer.
“O nível de agressão física contra os trabalhadores foi o que chamou mais a atenção”, disse Henrique Mandagará, coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul.
O sofrimento do grupo só chegou ao fim após três deles terem fugido e procurado policiais na cidade vizinha de Caxias do Sul. Após a operação, 194 voltaram para a Bahia e os demais permaneceram no estado. Pedro Augusto Oliveira de Santana, responsável pela empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, que contratava os trabalhadores e os terceirizava para as vinícolas, foi preso e liberado após pagamento de fiança.
“Vinho tinto de sangue”
O caso repercutiu pelas redes e não tardou para que trecho da música “Cálice”, de Chico Buarque, passasse a ser usado para demonstrar indignação e rechaçar as vinícolas. Charges e postagens faziam referência ao “vinho tinto de sangue” resultante da exploração do trabalho análogo ao escravo e pediam boicote às marcas.
Logo após a operação, as três vinícolas emitiram as notas de praxe dizendo que não compactuam com as práticas e que não tinham conhecimento de como os trabalhadores eram tratados. No entanto, para o Ministério Público do Trabalho, há, por parte das vinícolas contratantes, a chamada responsabilidade solidária no que diz respeito às condições oferecidas aos trabalhadores.
“Com relação às empresas tomadoras, é preciso garantir reparação coletiva e medidas de prevenção, já foram instaurados procedimentos investigativos contra as três vinícolas já identificadas”, afirmou a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ana Lucia Stumpf González.
O MPT poderá responsabilizar as vinícolas pela contratação da mão de obra em situação análoga à escravidão; como parte do processo, audiências serão realizadas ao longo desta semana. Até agora, o valor total estimado das verbas rescisórias a serem pagas supera R$ 1 milhão.
De acordo com o MTE, o problema do trabalho escravo é recorrente durante a época da colheita. Já foram feitas operações do mesmo tipo, neste ano, em Nova Roma do Sul, Caxias do Sul, Flores da Cunha e também em Bento Gonçalves. Dois locais que serviam como alojamentos foram interditados por apresentarem problemas de segurança em instalações elétricas, superlotação e questões de higiene.
“Esse tipo de prática lamentável e criminosa se intensificou após a reforma trabalhista. Para muitos empresários, agora não há mais Lei, acham que está tudo liberado e podem explorar os trabalhadores e trabalhadoras desta forma, como se fossem seus escravos. Mas, a escravidão já acabou no Brasil”, disse o presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil no RS, Guiomar Vidor. A CTB-RS cobrou punição e respostas por parte das autoridades.
Em entrevista à Rádio Gaúcha (RS) nesta segunda-feira (27), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, destacou: “Queremos que todos produzam, que as atividades econômicas se desenvolvam, que as empresas cresçam, que gerem oportunidades de trabalho, porém, que isso se dê nos termos da lei. E evidentemente o trabalho degradante e precário acaba incorrendo inclusive na capitulação prevista no Código Penal. Além de ser uma infração trabalhista, pode configurar um crime. Por isso, essa mensagem é importante inclusive para que outros empregadores, empreendedores, empresários, estejam atentos quanto à observância da lei”.
Já o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, informou ter solicitado a convocação de uma reunião da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) para que sejam articuladas as ações para apuração nas esferas criminal e trabalhista, bem como o apoio aos resgatados.
A bancada negra de deputados estaduais do Rio Grande do Sul — formada por Bruna Rodrigues (PCdoB), Laura Sitto (PT) e Matheus Gomes (PSol) —protocolou, no final da semana, a criação da Frente Parlamentar contra o Trabalho Análogo à Escravidão e pelo Trabalho Digno. “Esse será um instrumento no qual poderemos apontar políticas públicas de combate à situações como as que vieram à tona na Serra Gaúcha, fiscalizar e coibir o trabalho análogo à escravidão no RS”, disse Bruna Rodrigues, pelas redes sociais.