Reforma sindical, um “bode na sala” dos trabalhadores
O conjunto do sindicalismo concorda que é preciso atualizar o sistema de representação dos trabalhadores no Brasil. Originário da Era Vargas, o modelo atual foi estabelecido há 80 anos, numa época em que o País acumulava quase 15 mil normas, leis e decretos incidentes sobre as relações de trabalho, em nível federal, estadual ou municipal.
Além de sistematizar essa barafunda, era preciso responder às lutas sociais – que não cessaram nem sob a ditadura do Estado Novo (1947-1945). Os trabalhadores clamavam por mais direitos, por melhores condições de trabalho e pelo direito à organização. Em outras palavras, buscavam menos injustiças e desequilíbrios na relação capital-trabalho.
Para dar conta de todos os desafios e elaborar nossa primeira legislação trabalhista nacional, o presidente Getúlio Vargas convocou cinco juristas: Arnaldo Lopes Süssekind, Dorval Lacerda Marcondes, José de Segadas Viana, Luís Augusto Rego Monteiro e Oscar Saraiva. Essa comissão redigiu os mais de 910 artigos do Decreto-Lei Nº 5.452/1943, que criou a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Desde então, o mundo do trabalho viveu três revoluções industriais (a 2ª, a 3ª e, agora, a 4ª), passando por grandes transformações estruturais. Às bandeiras históricas de luta, os trabalhadores incorporaram mais reivindicações. O Brasil rural se industrializou e chegou a 85% de população urbana. É inevitável que uma legislação tão longeva requeira revisões e atualizações para se adaptar aos tempos subsequentes.
A modernização foi prometida para 2017, mas a reforma trabalhista de Michel Temer (MG) olhou tão-somente para os interesses do capital. Os trabalhadores perderam direitos, a precarização foi legalizada e o movimento sindical sofreu ataques nefastos. A ofensiva teve continuidade no governo de destruição de Jair Bolsonaro (PL).
A volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Planalto deu margem a uma possibilidade histórica: o movimento sindical foi efetivamente chamado a participar da construção de uma legislação do trabalho. Em 18 de janeiro, Lula recebeu as centrais sindicais em Brasília e anunciou três grupos de trabalho, sendo um deles para tratar da valorização da negociação coletiva e do fortalecimento dos sindicatos.
Segundo o novo governo, não haverá uma revogação integral da reforma trabalhista, mas, sim, a revisão de seus “marcos regressivos”, em diálogo com trabalhadores e empresários. “Vamos ter de construir juntos, pois fica mais difícil de desmanchar”, afirmou Lula aos sindicalistas.
Nesse debate, as centrais sindicais têm um guia: é o documento aprovado na 3ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat 2022), em abril passado. Se há consenso do sindicalismo em torno da Pauta da Classe Trabalhadora, essa unidade parece mais consolidada nas propostas essencialmente “trabalhistas” – nos pontos que tratam de retomada de direitos e proteção aos trabalhadores.
Mas, entre as 17 prioridades da Pauta, existe uma – a 16ª – que traz elementos para um debate sobre a “reestruturação sindical” no Brasil. Conforme as centrais, é necessário “fortalecer as entidades sindicais, ampliar a representatividade e a organização em todos os níveis”, além de garantir o “financiamento solidário e democrático da estrutura sindical”.
Ora, quando a convergência de um tema tão relevante para o movimento sindical se limita às diretrizes gerais – e não às demandas específicas –, não resta dúvida: cabe ouvir cada central para destrinchar e amadurecer o assunto, sem açodamento ou extravagância.
Por tudo isso, é inevitável dizer que há um “bode na sala” dos trabalhadores brasileiros. O bicho atende pelo nome de “Projeto de Valorização e Fortalecimento da Negociação Coletiva”. Embora o pretexto – “atualizar” o sistema sindical no Brasil – seja legítimo e urgente, seus ideólogos ignoraram o caráter unitário do Fórum das Centrais Sindicais.
O texto é definido como um “documento interno de trabalho” – mas é tão interno que a maioria das centrais não foi ouvida ou consultada. Para piorar, o texto avança em diversos pontos que nem sequer estão na Pauta da Classe Trabalhadora.
Uma das controvérsias é o ataque ao princípio da unicidade sindical, consagrado na Constituição Federal. No Brasil, o sistema confederativo é dividido em entidades sindicais de primeiro grau (os sindicatos), de segundo grau (as federações) e de terceiro grau (as confederações). De acordo com o artigo 8º da Constituição, “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial”.
Mas o bode na sala berra que é preciso flexibilizar esse princípio e restringir a unicidade apenas aos sindicatos, estimulando a fragmentação de federações e confederações. Em contrapartida, as centrais seriam fortalecidas, especialmente as três maiores – CUT, Força Sindical e UGT –, conferindo um ar de legalidade ao hegemonismo sindical.
E como esse hegemonismo seria instituído? Antes de tudo, retirando do Ministério do Trabalho e Emprego todas as atribuições relacionadas à organização do sindicalismo, como o Cadastro Nacional de Entidades Sindicais. O documento propõe “um processo de 10 anos de mudanças”, que culminaria num novo modelo de organização – o Sistema Cart (Conselho de Autorregulação das Relações de Trabalho), com representação de trabalhadores e empresários.
É nessa representação trabalhista que reside um dos pontos mais atrasados: “A Presidência da Câmara dos Trabalhadores será realizada em rodízio entre as 3 maiores Centrais e a vice-presidência em rodízio entre as demais Centrais representativas”. Um sindicalista com quem conversei, dirigente de uma das “demais Centrais representativas”, chamou a proposta de “safadeza das grandes”.
Ao mesmo tempo em que fala em “incentivo à ampla agregação e desincentivo à fragmentação e pulverização”, o documento passa não apenas um bode – mas toda a boiada – nas entidades de segundo e terceiro graus. É sugerido o esvaziamento (ou o mesmo o fim) das federações e confederações gerais, como a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), sem que fiquem claras as vantagens – se é que existem – da ruptura.
Não por acaso, diversas entidades já reagiram mal ao texto. É o caso da Conttmaf (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Aéreos, na Pesca e nos Portos), que acusou o projeto de “antidemocrático”. Segundo a Conttmaf, “o modelo sugerido, em vez de fortalecer os sindicatos e o sistema confederativo, busca dar poder absoluto para as centrais sindicais e estabelecer protagonismo apenas para três delas”. Bingo!
Tamanha prepotência é agravada por uma diretiva adicional – o documento pede pressa às centrais: “Temos que ser rápidos e ágeis”. Convém, sim, aproveitar sem demora o ambiente político mais democrático e favorável que sobreveio à vitória e à posse de Lula no Planalto. Mas o bode na sala não pode eleger falsos bodes expiatórios.
Vargas buscou juristas e ergueu uma legislação trabalhista avançada para a época. Lula mobilizou os sindicalistas a fim de adequá-la e evoluí-la. Qual o sentido de desperdiçar esse ponto de partida tão valoroso e retroceder?