Há um ano, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia tomou a medida extrema de entrar militarmente no território ucraniano. A ação militar russa, denominada Operação Militar Especial, foi iniciada vinte dias após um encontro entre Putin e Xi Jinping, em Pequim, e poucos dias após o parlamento russo, a Duma, ter aprovado uma resolução em que reconhecia as auto proclamadas Repúblicas de Donetsk e Lugansk, localizadas no extremo leste ucraniano, na região do Donbass. Fazem parte dos antecedentes da guerra o não cumprimento dos Acordos de Minsk I e II, de 2014, a persistência da OTAN em incorporar a Ucrânia oficialmente ao tratado, o crescimento de células fascistas e neonazistas em território ucraniano e o massacre à população russa do Donbass. Hoje, passado um ano do desenvolvimento da guerra, o fim do conflito não parece próximo e os passos dados pelos países que podem influenciar no seu desfecho ou no seu prolongamento revelam muito sobre a geopolítica na terceira década do século 21.

Pelo menos cinco eventos importantes marcaram a passagem dos doze meses da guerra e podem revelar se o conflito está mais distante ou mais perto do seu desfecho. São eles, a 59a Conferência de Segurança de Munique (17 a 19 de fevereiro), a visita de Biden à Ucrânia (20 de fevereiro), os pronunciamentos de Putin à nação russa, no parlamento e em um showmício (20 e 21 de fevereiro), a visita do chanceler chinês Wang Yi à Moscou (22 de fevereiro) e a Resolução da ONU sobre a paz na Ucrânia (23 de fevereiro).

A Conferência de Segurança de Munique este ano não teve a Rússia como convidada. Coube à China ser uma voz dissonante em uma reunião que pretendia classificar a Rússia como a única responsável pela guerra na Ucrânia. Longe de aproveitarem o espaço e a oportunidade do encontro de tantas autoridades governamentais para traçarem um plano para o estabelecimento de uma mesa de diálogo e negociações, a linha adotada foi a de uma competição entre quem apoia a Ucrânia de modo mais determinante, enviando mais armas e mais recursos. Serviu também para um ataque aos países que, como o Brasil, se posicionam de forma neutra em relação ao conflito, buscando uma margem para a mediação. Durante a reunião, o chanceler chinês Wang Yi informou que a China estaria produzindo um plano com objetivo de alcançar a paz na Ucrânia e reforçou muito a via do diálogo, contrariando quase todos os seus homólogos presentes no encontro.

Enquanto terminava a Conferência de Munique, na Alemanha, o presidente dos EUA se deslocava dos EUA para o leste europeu em uma visita surpresa à Ucrânia. Ele saiu da Polônia em um trem que percorreu um percurso de quase 10 horas até Kiev, onde se encontrou com o presidente ucraniano Vladimir Zelensky. A viagem serviu para deixar ainda mais clara a determinação dos EUA em prolongar a resistência ucraniana como forma de desafiar Putin e afastar qualquer possibilidade de abertura de diálogo no próximo período. A imprensa ocidental, incluindo a brasileira, se encantou ao relatar os desafios quase românticos de uma viagem inusual do presidente norte americano de uma pequena cidade da Polônia até a Ucrânia a bordo de um trem convencional. Foi muito ressaltado o fato de que Biden foi à uma zona de guerra não controlada por forças norte-americanas, algo impensável. Mas o mais importante extrato dessa viagem foi o claro aceno dos EUA à manutenção de uma estratégia de aposta na guerra e não na tentativa de dissuasão do conflito.

Enquanto Biden voltava de Kiev para Varsóvia e se preparava para uma fala sobre a necessidade do apoio à Ucrânia, Putin se preparava em Moscou para a realização de dois discursos à nação, um no parlamento, em uma fala anual sobre o estado da união e outro para um público de aproximadamente 200 mil pessoas, em um estádio, com apontamentos sobre o atual momento da ofensiva bélica sobre a Ucrânia. Em ambos discursos, Putin endureceu a fala com acusações ao ocidente por sua responsabilidade nas provocações que levaram à guerra, informa que a Rússia está suspendendo sua participação no tratado de redução de armas estratégicas New Start, reforça a ideia de que a guerra visa proteger as fronteiras russas e faz apelos ao nacionalismo russo. 

Na sequência de seus discursos, Putin recebeu no dia 22 em Moscou a mais alta autoridade em relações internacionais da China, o ministro dos negócios estrangeiros Wang Yi, que também se reuniu com o chanceler russo, Serguei Lavrov, e o secretário do conselho de segurança, Nikolai Patrushev. A reunião foi percebida como uma preparação para uma possível visita de Xi Jinping a Moscou e o reforço da parceria estratégica entre os dois países em diversos temas, entre eles o desenvolvimento da guerra na Ucrânia. O diplomata chinês reforçou a disposição da China em cooperar no distensionamento e na superação do conflito e isso apareceu também de modo enfático na participação de Yi na Conferência de Munique, na abstenção durante a votação da resolução da ONU sobre Ucrânia no dia 24 e na apresentação de uma proposta de doze pontos pelos chineses para o fim da guerra. Nestes pontos, apresentados pelos chineses, se destaca o ponto 4 que propõe a retomada das conversações e que o diálogo e a negociação é a única solução viável para a crise na Ucrânia.

Chegamos, portanto, ao último evento analisado neste pequeno texto sobre a passagem de um ano da guerra que é o da votação de uma resolução sobre a paz na Ucrânia, realizada pela Assembleia Geral da ONU no dia 23 de fevereiro. O texto da resolução prevê uma saída incondicional das tropas russas do território ucraniano. Sua aprovação contou com 141 votos a favor, 7 contra e 32 abstenções. Mas ela aponta muito mais para uma tentativa de aprofundar o isolamento internacional da Rússia do que para uma disposição à resolução dialogada e negociada do conflito. Provavelmente por isso tantos países do sul global, atacados na Conferência de Munique por sua neutralidade, tenham optado por se abster na votação, como China, Índia, Irã, África do Sul e outros. Estranhamente o Brasil não está entre eles.

Os eventos aqui elencados, como a Conferência de Munique, a visita de Biden à Ucrânia e a construção da resolução da ONU, com texto proposto por diplomatas ucranianos e seus aliados europeus, demonstram que a tentativa do ocidente é a de dividir o mundo em torno dos que estão “a favor e contra a Ucrânia”, mas isto diz muito mais sobre guerra do que sobre paz. Felizmente, muitos países que buscaram uma neutralidade ao longo dos últimos meses, e que foram atacados em Munique e se abstiveram na AGNU, podem ser muito importantes na busca de realmente dissuadir o conflito e buscar canais de diálogo para a abertura de uma real mesa de negociações, sem incondicionalidades, sem unilateralismo, sem sanções, boicotes e sabotagens. Que as propostas como as de Lula, de um grupo de países para mediar, ou de Xi Jinping, dos doze pontos sobre a crise na Ucrânia, sobressaiam sobre a aposta do ocidente na guerra, como sinal de novos tempos de um mundo multipolar.  

Ana Prestes é analista internacional, doutora em Ciência Política pela UFMG e diretora da Fundação Maurício Grabois, integra o Comitê Central e é secretária de Política e Relações Internacionais do PCdoB.