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“Dá uma sinalização importante, de que o governo deve seguir em uma outra direção: de uma regulamentação mais responsável, mais coerente com a nossa realidade de violência armada do país”, avalia a gerente de projetos do instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, sobre a queda expressiva no número de registros de armas no Brasil no primeiro mês do ano. “E, nesse sentido, ele (governo) deixa de incentivar, né?”, prevê.

Com regras mais rígidas que passaram a vigorar em janeiro, foi identificada uma queda de 71,5% nas inscrições de armas de fogo na comparação com o mesmo mês em 2022. A restrição do acesso a armas no Brasil foi uma das medidas assinadas pelo presidente Lula já no primeiro dia de governo.

Durante a gestão de Jair Bolsonaro o país viveu uma corrida armamentista, facilitada pelos decretos assinados pelo ex-presidente que flexibilizaram a posse e o porte, além da compra de munição. Em quatro anos houve um salto no número de armas cadastradas por cidadãos comuns no Sinarm – Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal.

Em janeiro de 2019 foram pouco mais de 2 mil novos cadastros. Um ano depois, o número já tinha mais do que triplicado: quase 7 mil novos registros; em janeiro de 2021 se aproximou dos 11 mil. Continuou alto em janeiro do último ano do governo Bolsonaro, quando superou os 8,7 mil.

“Existe uma questão das pessoas se adaptarem e se inteirarem de qual é a nova regra. E essa questão discursiva, essa questão subjetiva, de dar um novo tom do que deve ser a política nacional de controle de armas, de não haver um incentivo para que as pessoas se armem”, defende a representante do Sou da Paz.

O decreto que limitou o acesso a armas no Brasil, uma das medidas assinada pelo novo governo, também suspendeu ainda a concessão de novos registros para abertura de clubes e escolas de tiro no país, que também tiveram um crescimento drástico na gestão passada.

Conforme dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), nos últimos quatro anos, o Exército, responsável pela fiscalização, liberou 1.483 registros para as escolas e clubes de tiros. É mais que o dobro da soma de todos os registros aprovados nos dez anos anteriores.

O Brasil tem hoje 7.649 escolas e clubes de tiro cadastrados. O Exército não informou o volume de munições e a localização exata dos clubes de tiro nas cidades brasileiras.

“A Polícia Federal, o Exército, o governo federal, precisam identificar essas armas. Porque quando elas forem apreendidas, a gente tem que responsabilizar”, defende a pesquisadora Valéria Cristina de Oliveira, do Centro de Estudos sobre Criminalidade da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ela ressalta a importância de medidas para monitorar o uso de armas de fogo no país, como o recadastramento obrigatório no sistema da Polícia Federal de todas as armas compradas desde maio de 2019. E, “se não houver um sistema muito bem construído para acompanhar o registro dessas armas, essas informações ficam perdidas”, explica.

Apesar do número de solicitações para registro de armas de fogo no Brasil ter despencado em janeiro, o total de armas particulares espalhadas pelo país ainda é muito alto e chega a quase 3 milhões, mais do que o dobro de cinco anos atrás.

Levantamento dos institutos Sou da Paz e Igarapé, entidades especializadas no tema da segurança, mostra que o Brasil encerrou o ano de 2022 com a marca de 2,9 milhões de armas em acervos particulares.

O volume que representa mais que o dobro do que os 1,3 milhão de armamentos particulares que existiam no país em 2018, antes Jair Bolsonaro assumir a Presidência.

Inclui-se na pesquisa “armas em acervos particulares” os seguintes grupos: caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (os CACs); cidadãos comuns com registro para defesa pessoal; caçadores de subsistência; servidores civis (como policiais e guardas civis) com prerrogativa de porte e que compraram armas para uso pessoal e membros de instituições militares (policiais militares, bombeiros militares) que adquirem armas para uso pessoal.

Entre os detentores de armas destacam-se os CACs. Em 2018, somente 26,6% desse tipo de equipamento estava sob a responsabilidade deste grupo. Atualmente, os CACs representam 42,5% dos que possuem armamentos, aparecendo como a maior parcela dentre os proprietários desses acervos particulares. Os militares com armas particulares são agora 25% e outros 32,9% são dos que solicitaram armas para defesa pessoal junto à Polícia Militar.

“Esse aumento traz um impacto bastante significativo. Primeiro porque as armas na mão de militares, ainda que não seja de maneira institucional, estão com um grupo que tem treinamento para isso. Tem alguma vinculação de controle”, diz Melina Risso, diretora de Pesquisa do Instituto Igarapé. “O acesso às armas foi amplamente flexibilizado, mas não tivemos aumento na mesma intensidade do controle e salvaguarda que tínhamos antes”, observa.

“Por exemplo, os atiradores tinham classes dentro da categoria. O acesso a outros tipos de armamento dependia da sua progressão no esporte. Nos últimos quatros anos acabamos com essa progressão até (que progressivamente atinjam) as armas de grosso calibre. O acervo deles tornou-se mais potente”, justifica Risso.

O levantamento revela também que o crescimento percentual de novas armas nas mãos de CACs aumentou 31% entre 2019 e 2020, 39% entre 2020 e 2021 e 58% entre 2021 e 2022. São atualmente 1,2 milhão de armas sob o domínio desse grupo.

Além do grande contingente armamentista em poder dos CACs, outra preocupação é a modernização das armas controladas pelo crime, assunto que é tema de outro estudo do Instituto Sou da Paz.

Levantamento divulgado no segundo semestre do ano passado aponta que a participação dos fuzis entre as armas apreendidas saltou 50% em São Paulo e 16% no Rio de Janeiro. A proporção de pistolas, também autorizada para civis pelo governo Bolsonaro aumentou 31% em São Paulo e 32% no Rio.

Fonte: Página 8