“Relógio corre na Ucrânia contra mundo unipolar dos EUA”, diz MK Bhadrakumar
O ex-diplomata indiano e atual analista da cena internacional, MK Bhadrakumar, assinalou, com base em artigo de opinião no Washington Post, assinado por dois expoentes do ‘pensamento’ neocon, a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice (sob W. bush) e o ex-secretário de Defesa Robert Gates (W. Bush e Obama), que o “relógio está correndo na Ucrânia para a hegemonia global dos EUA”.
Para Bhadrakumar, o artigo Rice-Gates, intitulado “O tempo não está do lado da Ucrânia”, destaca exatamente esse paradigma, apesar de contrariar a narrativa triunfalista da mídia imperial até agora.
No artigo, Rice e Gates, após remontarem às duas guerras mundiais que marcaram a ascensão dos EUA como potência mundial, advertem que a “ordem baseada em regras” liderada pelos EUA desde 1990 – palavra de código para a hegemonia global dos EUA – “está em perigo se Biden falhar na Ucrânia”.
O apelo do artigo é a quem intensifique “drasticamente” o conflito na Ucrânia, assinala o ex-diplomata indiano, para quem, indiretamente, Rice e Gates reconhecem que a Rússia está em uma maré de vitórias. Evidentemente, a esperada ofensiva russa à frente está abalando seus nervos, observa Bhadrakumar.
FRONT DOMÉSTICO
O analista também registra o contexto doméstico em que o artigo foi publicado, apontando que o impasse da votação do presidente da Câmara e seu desfecho dramático em uma luta política acirrada entre os republicanos “pressagiam um Congresso disfuncional entre agora e a eleição de 2024”.
Como relatou a Associated Press e ele transcreveu, “dedos foram apontados, palavras trocadas e a violência aparentemente evitada … Foi o fim de um amargo impasse que mostrou os pontos fortes e a fragilidade da democracia americana”.
O próprio McCarthy, em sua declaração após a eleição como novo presidente da Câmara, listou como suas prioridades o compromisso com uma economia forte, combate à imigração ilegal na fronteira mexicana e a competição com a China, mas omitiu qualquer referência à situação da Ucrânia ou fornecer fundos para Kiev.
De fato, no início de novembro, ele havia afirmado que os republicanos na Câmara resistiriam à ajuda financeira ilimitada e injustificada à Ucrânia, acrescenta Bhadrakumar.
Quanto a Trump, embora seja um jogador diminuído, ainda permanece ativo e é de longe a maior voz do Partido Republicano, avalia o ex-diplomata. Portanto, seu apoio a McCarthy terá consequências.
“Biden entende isso. É concebível que o artigo de opinião sobre Rice-Gates tenha sido discutido pela Casa Branca e pelo estabelecimento de segurança dos EUA e, em seguida, roteirizado pelos neoconservadores. O artigo apareceu no dia seguinte à declaração conjunta de 5 de janeiro de Biden e do chanceler alemão Olaf Scholz, ressaltando sua ‘solidariedade inabalável’ com a Ucrânia”.
Bhadrakumar complementa, dizendo que sob imensa pressão de Biden, a Alemanha e a França cederam na semana passada para fornecer veículos de combate de infantaria à Ucrânia. Mais uma bateria de defesa aérea Patriot, de parte de Berlim.
No mesmo dia em que o artigo Rice-Gates veio a público,o Pentágono organizou, “incomum para um sábado”, uma coletiva de imprensa de Laura Cooper, subsecretária adjunta de Defesa, Assuntos de Segurança Internacional para Rússia, Ucrânia e Eurásia.
Cooper afirmou explicitamente que a guerra na Ucrânia ameaça a posição global dos EUA: “De uma perspectiva estratégica geral, é difícil enfatizar o suficiente as consequências devastadoras se Putin fosse bem-sucedido em atingir seu objetivo de dominar a Ucrânia. Isso reescreveria as fronteiras internacionais de uma forma que não víamos desde a Segunda Guerra Mundial. E nossa capacidade [dos EUA] de reverter esses ganhos e apoiar e defender a soberania de uma nação é algo que ressoa não apenas na Europa, mas em todo o mundo”.
GATO FORA DO SACO
O gato – a expressão é do indiano – está fora do saco, finalmente: os EUA estão lutando na Ucrânia para preservar sua capacidade de exercer influência globalmente. Teria sido mais preciso, mas talvez menos diplomático, dizer que o objetivo de Washington na Ucrânia é manter sua falida dominação unipolar do planeta, o status do dólar, sua ‘ordem sob regras’ e suas intervenções, impunidade e sanções.
No mesmo fim de semana, por coincidência ou não, o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, explicitou a condição da Ucrânia de bucha de canhão para a guerra por procuração dos EUA/Otan contra a Rússia.
“Na Cúpula da OTAN em Madri (em junho de 2022), foi claramente delineado que, na próxima década, a principal ameaça à aliança seria a Federação Russa. Hoje, a Ucrânia está eliminando essa ameaça. Estamos cumprindo a missão da OTAN hoje. Eles não estão derramando seu sangue. Estamos perdendo o nosso. É por isso que eles são obrigados a nos fornecer armas”, ele confessou.
RÚSSIA “ABERTA A DIÁLOGO”
Em contraste, Bhadrakumar ressalta que Putin deixou claro que “a Rússia está aberta a um diálogo sério – sob a condição de que as autoridades de Kiev atendam às demandas claras que foram repetidamente apresentadas e reconheçam as novas realidades territoriais”.
Quanto à guerra, as notícias de Donbass são extremamente preocupantes, para Washington. Soledar está nas mãos dos russos, e os combatentes de Wagner estão apertando o cerco em torno de Bakhmut, um centro estratégico de comunicação e eixo das implantações ucranianas no Donbass.
Ele acrescenta que, em 4 de janeiro, Putin saudou o Ano Novo com a formidável fragata Almirante Gorshkov carregando “sistema de mísseis hipersônicos Zircon de ponta, que não tem análogo”, embarcando em “uma missão naval de longa distância através dos oceanos Atlântico e Índico, bem como como o Mar Mediterrâneo.”
Uma semana antes, o sexto submarino estratégico de propulsão nuclear da classe Borei-A, o Generalissimus Suvorov, ingressou na Marinha Russa. Essas embarcações são capazes de transportar 16 mísseis balísticos intercontinentais Bulava.
Rice e Gates alertaram que o tempo trabalha a favor da Rússia: “A capacidade militar e a economia da Ucrânia agora dependem quase inteiramente das linhas de vida do Ocidente – principalmente dos Estados Unidos. Na ausência de outro grande avanço ucraniano e sucesso contra as forças russas, as pressões ocidentais sobre a Ucrânia para negociar um cessar-fogo crescerão à medida que os meses de impasse militar passarem. Nas circunstâncias atuais, qualquer cessar-fogo negociado deixaria as forças russas em uma posição forte”.
Para Bhadrakumar, esta é uma avaliação “brutalmente franca”. A ligação de Biden para Scholz na sexta-feira também mostra “a angústia” em sua mente. “Com a fragmentação da classe política dentro da América, Biden também não pode se permitir rachaduras na unidade aliada”.
Curiosamente – observa o analista indiano -, esse também foi o principal objetivo de um artigo publicado quinze dias atrás por um importante comentarista russo, Andrey Kortunov, no jornal Global Times do Partido Comunista da China, intitulado “Os problemas internos dos EUA podem empurrar a Ucrânia para a margem do debate público americano”.
“Deixando as emoções de lado, é preciso aceitar que o conflito já se tornou existencial não apenas para a Ucrânia e a Rússia, mas também para os EUA: o governo Biden não pode aceitar uma derrota na Ucrânia sem enfrentar grandes implicações negativas para as posições dos EUA em todo o mundo”, sublinhou Kortunov. Ele estava escrevendo quase duas semanas antes de Rice e Gates “começarem a ter a mesma percepção metafísica”.
“Mas os neocons ainda não estão preparados para aceitar que a escolha que realmente os encara é Biden nadando ao lado de Putin em direção a uma ordem mundial multipolar ou afundando nas águas turbulentas”, conclui Bhadrakumar.
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