O caso Daniel Alves e a falência do futebol brasileiro
Em pouco mais de dois meses, o torcedor brasileiro esteve às voltas com duas decepções. Uma, dentro de campo: a eliminação nas quartas-de-final da Copa do Mundo de 2022. Outra, fora das quatro linhas: a prisão do lateral-direito Daniel Alves, de 39 anos, acusado de agressão sexual e estupro na Espanha.
Derrotas e escândalos são comuns no mundo da bola, mas o País parece viver uma crise crônica. O desempenho da Seleção Brasileira nas últimas Copas talvez seja o sintoma mais escancarado dessa crise. Após chegar às finais de três Mundiais seguidos (1994, 1998 e 2002), vencendo dois deles, o time acumula fracassos.
Desde 2002 – quando venceu a Alemanha por 2 a 0 e se sagrou pentacampeão mundial –, o Brasil não vence uma seleção europeia nos mata-matas da mais importante competição do futebol. Perdemos para a França em 2006, para a Holanda em 2010, para a Alemanha em 2014, para a Bélgica em 2018 e para a Croácia em 2022.
Mesmo em nível continental, a hegemonia brasileira está em xeque. Na classificação geral das Copas, ficamos atrás do Uruguai em 2010 e 2018, bem como da Argentina em 2014 e 2022. Das cinco edições mais recentes da Copa América, o Brasil só levou o título uma vez.
A crise no âmbito coletivo é acompanhada da crise no âmbito pessoal. Entre 1994 e 2007, jogadores do País conquistaram nada menos que oito dos 14 prêmios de melhor jogador do mundo. A maioria dos clubes badalados do Planeta tinha ídolos brasileiros.
Nossos craques não eram monumentos morais ou exemplos comportamentais. Porém, com eles em campo, a Seleção continuou a ser uma referência coletiva, que esbanjava talentos individuais. O Brasil era respeitado e temido porque seguia acima da curva. Para usar um clichê, era impossível questionar que ainda se tratava do “país do futebol”.
Tampouco se podia negar que, pecadilhos à parte, craques como Romário e Ronaldo levaram a sério a responsabilidade de representar o País por meio do futebol. Não havia conflitos entre suas metas e vontades pessoais com a missão coletiva – o projeto maior – de servir com excelência à Seleção.
A falência do futebol brasileiro se expressa, em boa medida, no ideário da geração pós-Romário e pós-Ronaldo. Os melhores jogadores brasileiros são vendidos cada vez mais cedo para clubes estrangeiros, tornando-se praticamente desconhecidos no País. O desapego – a falta de identidade – leva craques milionários e mimados a se recusarem a jogar amistosos pela Seleção, para não “atrapalhar a temporada”.
Ao longo da crise, nomes como Ronaldinho Gaúcho, Robinho e Neymar foram apontados como ícones da transição. Mais velho, Ronaldinho se destacou na Copa-2002 e foi o melhor do mundo em 2005 e 2006. Mas a segunda fase de sua carreira foi de declínio. Depois do fiasco no Mundial-2006, praticamente se despediu da Seleção. Em 2019, já aposentado e cheio de problemas judiciais, foi detido no Paraguai por estar com passaporte falso – ele e o irmão Assis permaneceram 171 dias preso.
Robinho, apresentado com pompa ao Real Madrid em 2005, disse logo em sua primeira entrevista coletiva na Espanha que seu “grande” sonho era se “tornar o número um” do mundo. Em campo, não foi sequer o melhor jogador do Real em seu período – quem dera do mundo! – e pouco contribuiu para a Seleção Brasileira. Atuou como titular somente em uma Copa, a de 2010, mas já como coadjuvante de Kaká. Encerrou a carreira após ser condenado a nove anos de prisão na Itália por crime de violência sexual e estupro em grupo.
Neymar permaneceu por mais de uma década na condição de principal jogador do Brasil. Teve boas atuações na Copa de 2014, da qual saiu contundido, sem ter participado da humilhante derrota de 7 a 1 para a Alemanha. Mas falhou nos Mundiais seguintes e, como Robinho, foi ofuscado por outros craques enquanto jogou no futebol europeu. Nos tribunais da Justiça, teve arquivado um inquérito que o acusava de estupro e foi absolvido das acusações de fraude e corrupção. Nos tribunais da torcida, o reconhecimento a Neymar cai ano a ano.
Para todos os efeitos, Neymar personifica como ninguém este período em que a Seleção Brasileira se resume a um apanhado de profissionais alienados e despolitizados, obcecados pela popularidade nas redes sociais e pelos contratos publicitários. A torcida brasileira mal conhece sua atual Seleção, não sabe onde a maioria dos jogadores atua, não vê empatia no time. São os que se calam covardemente ante os descalabros do governo de destruição de Bolsonaro, mas forjam valentia ao se unirem para atacar um crítico como Casagrande.
O caso de Daniel Alves agrava a crise ao revelar que, mesmo depois da condenação de Robinho, muitos jogadores continuam a se acha acima da lei. A juíza italiana à frente do julgamento de Robinho em segunda instância criticou especialmente “os sinais inequívocos de falta de escrúpulos e quase consciência de uma futura impunidade”. Contra o jogador brasileiro, por sinal, já pesava uma denúncia anterior de abuso sexual na Inglaterra.
Para Daniel Alves, é o fim melancólico da carreira do maior vencedor de títulos oficiais na história (43, segundo a Fifa) e também o ocaso do jogador mais velho a vestir a camisa da Seleção Brasileira numa Copa do Mundo. Há um silêncio dos colegas em relação a seu caso, o que pode até ser considerado um avanço, já que muitos atletas saíram em defesa de Robinho mesmo diante de evidências cada vez mais esclarecedoras.
Já perdemos Copas – como a de 1982 – com a convicção da injustiça. Mas o que as eliminações recentes nos deixam é um sentimento de indignação com a apatia, o descompromisso e até certa irresponsabilidade da equipe. De uma geração que vê o bolsonarismo com indisfarçável simpatia, não se pode esperar um repúdio enfático à cultura do estupro. E não convém esperar mais nada nem dentro de campo.