Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Há dez anos, no dia 27 de janeiro de 2013, o Rio Grande do Sul vivia um dos momentos mais dramáticos de sua história: o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que deixou 242 mortos e 636 feridos, a grande maioria jovens. Até hoje, o caso causa comoção e choca tanto pelo número de vítimas quanto pelo fato de que ninguém foi preso pelo crime. 

O impacto do incêndio que traumatizou toda uma cidade e é uma ferida aberta no país levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a se pronunciar pelas redes sociais: “Há 10 anos, o Brasil chorava com a morte de 242 jovens em Santa Maria, no incêndio da Boate Kiss. Uma das noites mais tristes da nossa história, que deixou marcas irreparáveis e uma cidade que até hoje pede por justiça. Minha solidariedade aos familiares e amigos das vítimas”. 

Apesar da gravidade, o caso segue sem punição. Quatro réus responsabilizados pela tragédia chegaram a ser condenados pela Justiça em 2021 após quatro dias de julgamento e o maior júri popular da história do estado: os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão. 

Porém, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS anulou a sentença poucos meses depois, ao acolher parte dos recursos da defesa. Após pedido do Ministério Público, que ingressou com embargos declaratórios contra a decisão de nulidade, agora o processo está no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O juiz do caso, Orlando Faccini Neto, lamentou a decisão, conforme o jornal O Estado de S.Paulo: “Eu recebi com desolação a notícia. Eu fiquei frustado. Dediquei minhas melhores energias, procurei atuar com minhas melhores intenções para que o júri se iniciasse, tramitasse com normalidade e que fosse concluído, imaginando que de alguma forma isso representaria uma resposta do sistema judiciário para o episódio que ocorreu já há uma década”.

Série e documentário

Não sem polêmica, o processo em torno do tragédia foi retratado por duas obras recém-lançadas. Na Globoplay, o caso foi abordado no formato de documentário em “Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria”. Composta de cinco episódios, a obra, dirigida pelo jornalista Marcelo Canellas, que cresceu em Santa Maria, lembra desde os acontecimentos que resultaram no incêndio até a busca por justiça, passando pelas reviravoltas em torno do processo. 


Em nota oficial lançada sobre o documentário, Canellas explicou: “A nossa ideia inicial era contar a história da boate Kiss, tendo o julgamento como pano de fundo, imaginando que o julgamento iria chegar a um desfecho. No entanto, não houve esse desfecho porque o julgamento foi anulado. É uma história de luta de um grupo de mães, pais e sobreviventes por Justiça. E como esse sofrimento ficou sendo remoído ao longo do tempo e retornando como se fosse algo sem fim”. 

Outra obra sobre o tema é a série ficcional lançada pela Netflix no dia 25, “Todo dia a mesma noite”, que tem como base o livro-reportagem homônimo da jornalista Daniela Arbex. A obra, dirigida por Júlia Rezende, é composta por cinco episódios e tem em seu elenco Debora Lamm, Thelmo Fernandes, Bel Kowarick, Bianca Byington, Paulo Gorgulho, Leonardo Medeiros, Pablo Sanábio, Miguel Roncato, Flávio Bauraqui, Laila Zaid e Marilene Leal.

A história é contada a partir de quatro familiares das vítimas que foram processados por integrantes do Ministério Público por terem feito críticas à atuação dos promotores no caso. 

Diante de polêmicas que surgiram sobre se era o caso ou não de reviver a dor da tragédia, Júlia Rezende destacou ao UOL: “o que a gente está fazendo aqui é dar voz a esse acontecimento, não deixar cair no esquecimento. Acho que a gente precisa que as pessoas saibam do que aconteceu ali. Famílias foram processadas pelo Ministério Público. Isso é um acontecimento inacreditável, e ninguém sabe”. 

Da mesma forma, a autora do livro, Daniela Arbex, salientou ao mesmo site: “Existe uma narrativa frágil de dizer que vai tocar, vai causar dor. Não! Não falar é o que causa sofrimento. Não falar é que permite que outras tragédias como essa aconteçam no Brasil”. 

Além desse ponto em torno da obra, outra polêmica envolveu a série. Em meio ao lançamento da produção, um grupo de pais das vítimas disseram processariam a Netflix porque não teriam sido consultados a respeito. 

“Nós fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está lucrando com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos. Queremos entender quem autorizou, quem foi avisado, porque muitos de nós não fomos. Há pais passando mal por causa da série. O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja repassada para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nó”, disse, segundo o jornal Zero Hora, o empresário Eriton Luiz Tonetto Lopes, que perdeu a filha Évelin Costa Lopes, de 19 anos, na tragédia.

Em sentido oposto, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Kiss emitiu comunicado afirmando que estava ciente da produção da série e que “sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora”. 

A nota diz que “a produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória”. 

Ainda de acordo com a associação, “é preciso falar, debater, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer”.