A maior concentração foi em Paris com 400 mil nas ruas (Alain Jocrad-AFP)

“64 anos é não!”: dois milhões de manifestantes foram às ruas da França na quinta-feira (19) para repelir a famigerada “reforma da previdência” do presidente Emannuel Macron e, em especial, o aumento da idade mínima para aposentadoria em mais dois anos.

“Uma maré humana contra uma política regressiva”, assinalou o jornal Le Monde, descrevendo a resposta massiva à convocação unitária das oito centrais sindicais, que recebeu o apoio da maioria da oposição e dos estudantes.

Em Paris, 400 mil pessoas marcharam da Praça da República até a Praça da Nação, passando pela Bastilha, para dar um rotundo “não” ao esbulho anunciado. Em Marselha, foram 150 mil.

Os protestos se estenderam a 200 cidades por todo o país – de Nice a Estrasburgo, de Lyon a Callais, Nantes, Tolouse, Rennes e Bordeaux. Serviços de trem, escolas, voos e dezenas de empresas na França foram interrompidos na quinta-feira.

Também chamou a atenção que as manifestações nas pequenas cidades “lotaram, como não se via há muito tempo”. Como desabafou uma manifestante, “fomos atingidos pela Covid, a guerra e a inflação. E o que o governo está fazendo? Ele ataca, ele continua atacando”. Declaração que expressa de forma sensível a perplexidade diante dos rumos seguidos pelo governo Macron.

Da Espanha, onde se encontrava em visita oficial, Macron asseverou a jornalistas que seu arrocho sobre os sexagenários era “justo e responsável”.

Na multidão em Paris, muitos estudantes que cantavam “a juventude está protestando/ Macron, você está acabado”. Nos professores, a adesão à paralisação chegou a 70%, segundo os sindicatos. Entre os ferroviários, a participação variou de 77% entre os maquinistas de trem a 50% entre o pessoal do controle.

Não houve tráfego no porto de Calais, o primeiro da França para viajantes, devido a uma greve dos portuários. A administração da EDF [energia elétrica] estimou em quase 45% os grevistas. Também pararam refinarias da Total e vários depósitos de combustível. Metrô e trens sofreram uma drástica redução nas operações. 20% dos voos que partiam do Aeroporto de Orly foram cancelados. Monumentos como a Torre Eiffel e o Palácio de Versailles também foram afetados.

ACINTE

“Querem cortar os valores dos benefícios e aumentar para 64 anos a idade mínima para a aposentadoria integral, dois anos a mais do que está em vigor atualmente, o que é um completo acinte”, sublinhou o secretário-geral da CGT, Phillipe Martinez.

Dirigentes das centrais sindicais abrem a manifestação em Paris

A “reforma” de Macron também estende para 43 anos o tempo de contribuição. De acordo com várias pesquisas, incluindo uma realizada pelo Instituto Montaigne, os franceses se opõem de forma esmagadora à mudança da atual idade mínima de aposentadoria (62 anos).

O leque dos partidos que se opõem à ‘reforma Macron’ vai do França Insubmissa, Partido Comunista Francês, socialistas e verdes, ao Reunião Nacional de madame Le Pen e ao pequeno Patriotas, de Florian Philipot.

Macron já havia tentado impor sua ‘reforma’ em 2019, enfrentando enorme oposição dos trabalhadores, recuou provisoriamente por ocasião da pandemia e voltou à carga agora.

Está marcada para a próxima segunda-feira (23) reunião do Conselho de Ministros para formalização da reforma, para em uma semana ser levada à votação em comissão na Assembleia francesa e, nos planos de Macron, levar o esbulho ao plenário a partir de 6 de fevereiro.

Por essa razão, em reunião das oito centrais (CGT, CFDT, FO, CFE-CGC, CFTC, UNSA, Solidaires, FSU) logo após o dia de manifestações, foi aprovada nova jornada nacional no dia 31 para barrar a ‘reforma Macron’.

Sindicatos preparam greves setoriais já para a próxima semana, assim como atos de repúdio. A reforma previdenciária “canaliza todo o descontentamento” da França, assinalou Martinez, da CGT.

A última vez que todas as centrais francesas haviam atingido esse grau de unidade havia sido em 2010. “Nada justifica uma reforma tão brutal”, afirmou Laurent Berger, líder da moderada CFDT. Ele acrescentou que a reforma é “injusta para com os trabalhadores mais precários” e instou o governo a recuar.

AMPLA FRENTE

“Se o governo acha que sua reforma é justa, que faça um referendo! Emmanuel Macron deve suspender esta reforma”, conclamou o secretário nacional do Partido Comunista, Fabien Roussel, na manifestação em Paris.

Em Marselha, o líder da França Insubmissa e ex-candidato a presidente, Jean-Luc Mélenchon, assinalou que as centrais sindicais fizeram “uma demonstração impressionante de apoio popular” e que Macron perdeu o “primeiro turno” desse enfrentamento.

“Já existe uma batalha perdida pelo governo […], a de convencer as pessoas”, apontou Mélenchon. “Esta reforma não faz sentido” e Macron “tem de parar, esta queda de braço não serve para nada”.

No passado – ele acrescentou – “havia sempre uma dúvida, de que o sistema [de aposentadoria] está em perigo”. Agora, as pessoas sabem que estão a lhes mentir, “que não é verdade, que vão adiar um pouco de vida delas para dar a outros, os que estão se empanturrando”.

Mélenchon ironizou também que os membros do governo Macron “não sabem o que vai acontecer depois de amanhã e afirmam saber o que vai acontecer daqui a 10 anos”.

A reforma da previdência “é rejeitada por uma maioria muito grande dos franceses e por quase todos os trabalhadores” e deve ser “pura e simplesmente cancelada”, afirmou a líder do RN, Marine Le Pen, no Twitter. Ela instou Macron a “mudar de opinião, nunca é tarde para ouvir a vontade dos franceses”.

A prefeita socialista de Paris, Anne Hidalgo também chamou “a dizer NÃO a esta ‘reforma’ brutal e injusta que atinge os mais frágeis, aqueles que trabalharam arduamente. Com os sindicatos para defender nosso modelo social, mais uma vez ameaçado”.

Philipot, por sua vez, denunciou que reforma da previdência é uma política brutal ordenada pela União Europeia, em contraposição às alegações do macronismo de que os franceses têm que se ‘equiparar’ a outros europeus que já estão mais arrochados na hora de se aposentarem.

Em 1995, uma gigantesca onda de manifestações que praticamente parou a França jogou na lata do lixo a primeira tentativa de “reforma da presidência”, durante a presidência de Jacques Chirac, e levou à renúncia do primeiro-ministro Allain Juppé.

HÁ ALTERNATIVAS, DIZ CGT

Em documento, a principal central sindical francesa, a CGT, contestou as alegações de Macron sobre a malsinada ‘reforma’. “Para financiar pensões e aposentadorias melhores aos 60 anos, existem soluções. Aumentar salários, criar empregos, tributar dividendos, garantir igualdade salarial, jornada de 32 horas. O governo se recusa a debatê-lo”.

“Mesmo que se comprovasse o cenário de déficit de 12 bilhões de euros em 2027 adotado pelo governo, bastaria um aumento de 0,8 ponto de contribuição para preenchê-lo”.

Caso se acabe com a diferença salarial de 28% entre mulheres e homens “traria 6 bilhões de euros para os fundos de aposentadoria” ..

“O governo quer forçar uma reforma brutal e injusta para reduzir o déficit previdenciário que chegaria a 12 bilhões de euros em 2027, 13,5 bilhões até 2030, segundo previsões do Conselho de Orientação de Pensões (HORN)”. Déficit que o órgão reconhece como “temporário com, a longo prazo, um retorno ao equilíbrio”.

A CGT afirma que não há problema orçamentário de curto prazo para financiar as aposentadorias. “O sistema como um todo tem 200 bilhões de euros em reservas. E existem as alavancas de ação para financiar a reforma aos 60 anos (55 para trabalhos difíceis), e para garantir uma pensão mínima de 2.000 euros”.

Sobre de onde podem vir os recursos, a CGT assinalou que “aumentar os salários, uma vez que aumenta automaticamente as contribuições para a segurança social para financiar as pensões e garante melhores direitos à pensão”. No setor privado, um aumento salarial de 5% rendeu 9 bilhões de euros em contribuições: “metade do que o governo espera economizar com sua injusta reforma”.

Outra fonte são as isenções fiscais às empresas, 157 bilhões de euros anuais: “são 13 vezes o déficit previdenciário anunciado!”.

“Deixar de isentar os dividendos das empresas e os rendimentos financeiros das contribuições para a segurança social. E há muito o que fazer: em 2022, os acionistas das empresas CAC 40 receberam 80 bilhões de euros”.

Também, “integrar gratificações, participações e participações nos lucros dos funcionários públicos nas contribuições previdenciárias”. Ainda, “aumentar as contribuições em 0,8 pontos: ou seja, € 8,25 por mês nas contribuições do empregado e € 8,25 nas contribuições do empregador para um salário mínimo de € 2.000”.

“O número de empregos que poderiam ser criados com a passagem para 32 horas no setor privado é estimado em cerca de 1,7 milhões, ou seja, € 13,6 bilhões em contribuições adicionais para pensões. Ao recrutar os 400.000 funcionários necessários para o serviço público hospitalar, seriam arrecadados mais 5 bilhões de euros para a previdência”.

Papiro (BL)