Decreto de Lula revoga desmonte de colegiados de participação social
Ao contrário de Jair Bolsonaro, que evitava o expediente e ao final do mandato deixou de governar, Lula iniciou o primeiro dia do mandato, que deveria ser apenas festivo, trabalhando intensamente. Já no domingo (1), no Palácio do Planalto, após receber a faixa presidencial e discursar, Lula assinou uma série de medidas provisórias (MPs), decretos e despachos que mudam a vida dos brasileiros de alguma forma.
Com isso, ele oficializou o ‘revogaço’ de atos editados por Bolsonaro. Nesta segunda-feira (2), primeiro dia útil de 2023, foram publicados no Diário Oficial da União (DOU) os decretos com as primeiras medidas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assinados e anunciados durante a cerimônia de posse no domingo (1). Decretos e despachos têm validade imediata.
Entre os decretos divulgados em edição extra do DOU está o que revoga o ato que extinguiu vários colegiados que garantiam participação social nos órgãos do governo e limitava a atuação de outros. Assim, ele muda as regras para inclusão da sociedade na definição de políticas públicas e contrasta com o primeiro dia útil de Bolsonaro, quando foram gradualmente desmontados todos os mecanismos de participação da sociedade no aconselhamento do Executivo.
No dia 8 de maio de 2019, Bolsonaro extinguiu 55 colegiados da administração pública federal, incluindo o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), conhecido como “Conselhão”. Composto por mais de 90 representantes da sociedade civil, com grande número de empresários, o “Conselhão” foi criado em 2003 durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva para atuar no aconselhamento direto ao presidente da República, com recomendações para criação ou aperfeiçoamento de políticas públicas em diversas áreas.
O decreto publicado revoga disposições criadas por Bolsonaro para dificultar e barrar a participação da sociedade civil nos conselhos, especialmente representantes de entidades sociais. As instâncias mantidas eram praticamente dominadas por agentes do governo, parlamentares governistas e empresários selecionados. Mas a interlocução do governo Bolsonaro com a sociedade era direta e seletiva, baseada na cooptação de apoio para o governo por parte de lideranças sociais, empresariais, religiosas, por meio de oferta de benesses financeiras e fiscais.
Com os decretos de Bolsonaro, extinguiu-se o pagamento de despesas da participação dos conselheiros, exigindo reuniões remotas que a maioria dos participantes não tinham estrutura adequada. Reduziu-se o número de participantes e extinguiu-se alguns colegiados. Estas dificuldades se espalharam por todos os conselhos municipais e estaduais, impedindo também o diálogo entre estas instancias municipais, estaduais e nacionais.
Lula pretende recriar o Conselhão, órgão de assessoramento criado no seu primeiro mandato, em 2003, e extinto por decreto de Jair Bolsonaro em 2019. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social reunia periodicamente representantes dos empresários, personalidades, acadêmicos e lideranças civis. É por meio do Conselhão, por exemplo, que pode ocorrer a prometida interlocução entre Lula e as igrejas evangélicas, segmento que cobrou mais participação governamental.
Participação desde a campanha eleitoral
Já nas primeiras semanas após ser eleito, Lula continuou mantendo a prática de consultar a sociedade para definir propostas de governo para sua campanha eleitoral. No dia 13 de dezembro, o Conselho de Participação Social do Gabinete de Transição se reunia no Centro Cultural Banco do Brasil para coletar sugestões para aumentar a participação da sociedade civil no governo. Foi a última atividade do colegiado de transição.
Entre as 50 organizações que participaram, estava a coordenadora do Movimento Negro Unificado, Simone Nascimento, e a coordenadora nacional do MST, Kelli Mafort, que já apontaram o conteúdo para este decreto publicado agora.
Foi apresentada proposta de criação, no âmbito da Secretaria-Geral da Presidência, um órgão responsável para garantir a participação social. A ideia era garantir um participação com caráter interministerial, portanto, transversal. Além disso, Lula reafirmou a volta dos conselhos e das conferências nacionais.
O deputado federal Márcio Macêdo (PT-SE), da Secretaria-Geral da Presidência, havia sinalizado em entrevistas uma proposta de reestruturação do ministério que deverá incluir uma secretaria destinada à participação social. Ele afirmou que os movimentos sociais terão no Palácio do Planalto um endereço oficial para levar suas reivindicações.
Nesta secretaria haveria a participação de 57 entidades nessa “secretaria de diálogos com a sociedade”. “Está incorporada aí a questão da juventude. Esses instrumentos serão utilizados para fazer a razão de existir do ministério, que é abrir as portas do governo para o povo e possibilitar que o povo possa contribuir na definição das políticas públicas e na sua execução”, disse Macêdo.
Constitucionalidade
A Constituição de 1988 prevê a participação direta da população em referendos e plebiscitos – algo pouco desenvolvido no país – e também a participação da sociedade na formulação e no controle social de diversos setores de políticas públicas. A experiência brasileira de participação social se fortaleceu após a promulgação da Constituição, e o país tornou-se referência internacional de instrumentos de inovação democrática.
A retomada das conferências nacionais, a reestruturação dos conselhos e dos fóruns interconselhos, além de terem sido promessas de campanha de Lula, se encontram no relatório final da transição governamental e se impõem como necessários.
No início de dezembro, a Rede Democracia e Participação, o INCT Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e a Rede Brasileira de Orçamento Participativo realizaram, em Brasília, o Seminário “A Reconstrução da Participação Social no Brasil”, que elaborou o relatório para a transição.
Foi pedida a implantação de fato da Lei 13.019/14, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a Administração Pública e as Organizações da Sociedade Civil, que foi em grande medida interrompida com o golpe parlamentar de 2016, é outro fator significativo.
Foi proposta ainda a utilização do planejamento orçamentário como mecanismo de inserção da participação em todas as áreas. Lula havia se comprometido com a criação de um Orçamento Participativo Nacional, durante a campanha. O estabelecimento de um Sistema Nacional de Participação Social popular, integrado, deliberativo, fiscalizador, orientado por princípios de equidade de gênero e raça e de inclusão, e que abranja mecanismos de democracia direta, foi outro ponto de destaque.
Jornadas de 2013
Uma das maiores preocupações do governo é garantir que os mecanismos de participação social avancem e aprimorem sua dinâmica de funcionamento para não incorrer nas lacunas percebidas anteriormente. Apesar de todo o esforço havido de institucionalizar a participação social, não havia um claro reconhecimento da sociedade brasileira nas medidas definidas entre o governo e os conselhos e conferências, o que permitiu um distanciamento de grandes parcelas da sociedade dos governos progressistas.
Esta lacuna se expressou nas manifestações de 2013, quando até movimentos sociais não se reconheciam nos mecanismos institucionais de participação social do governo, e também depois, com os resultados eleitorais mostrando a identidade de parcelas da sociedade com o autoritarismo de Bolsonaro. As organizações sociais pensam estratégias para evitar vícios de aparelhamento dos colegiados, em que são sempre os mesmos que ocupam as cadeiras e impedem a renovação do mecanismo de participação. De alguma forma, a sociedade como um todo não se sente parte das decisões.
Para superar os entraves anteriores, existem ideias de educação popular de gestores e cidadãos para a participação, articulada com uma estratégia inovadora de comunicação para a promoção do conhecimento e a valorização dos processos participativos pela população. Será preciso também inovar na implantação de mecanismos de deliberação e participação direta para mobilizar e qualificar o debate público, principalmente em pautas marcadas pela polarização e desinformação, incorporando-se a tecnologia digital para o conhecimento de demandas e preferências dos cidadãos.
A advogada e integrante da Coordenação Executiva da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), Tânia Maria de Oliveira, defende que, ao lado do resgate dos conselhos, conferências, plataformas digitais, audiências públicas e mesas de diálogo, o governo eleito amplie sua base social, crie canais diretos com a sociedade, pensando em garantir legitimidade e permanência das políticas públicas no plano local, criando conselhos populares nos bairros, territórios, reinventando modelos outrora abandonados de participação social ao lado das novas formas e fazeres.
(por Cezar Xavier)