Com os gasodutos Nord Stream fechados, Europa se prepara para rigores do inverno (Odd Andersen/AFP)

A poucos dias do início oficial do inverno, a última cúpula do ano da União Europeia aprovou um teto de preços para o gás russo de 180 euros por megawatt-hora a partir de 15 de fevereiro, a pretexto de conter a alta dos preços causada pela artificial supressão do combustível russo e, portanto, escassez, sob as sanções à Rússia.

A decisão – outro tiro no pé – veio pouco tempo depois de até o presidente francês Emmanuel Macron ter reclamado em público que os europeus estavam tendo de pagar pelo GNL norte-americano “3-4 vezes mais” que o preço cobrado aos consumidores norte-americanos.

“Esses são padrões duplos”, disse Macron, acrescentando que estava em jogo a “sinceridade no comércio transatlântico”.

Declaração feita em meio a protestos nas ruas do velho continente contra o preço extorsivo das tarifas de gás e eletricidade e a inflação recorde, bem como a grita de líderes políticos e de setores econômicos chaves de que a Europa está sob “ameaça iminente de desindustrialização”.

Áustria e Holanda se abstiveram e a Hungria votou contra o “teto”. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou-o “inaceitável” e prometeu a devida resposta, a exemplo do que já ocorre com o ‘teto de preço’ do petróleo russo transportado por navio. “Vai aumentar o sofrimento autoinfligido” europeu, disse por sua vez a porta-voz da diplomacia russa, Maria Zakharova.

Segundo o portal Politico, o teto do preço do gás vem “após meses de divisões tensas sobre a questão, “mas o acordo final pode acabar não agradando ninguém”.

Segundo tal “mecanismo de correção do mercado” – isso não seria uma heresia para os neoliberais no poder na Europa? –, o “teto” afetará contratos negociados nas bolsas de gás europeias, a principal delas na Holanda, a TTF, se esse nível de preços for atingido por três dias úteis consecutivos e se os preços do gás natural liquefeito (GNL) forem, pelo mesmo período de tempo, 35 euros acima do seu preço global.

A Alemanha – que vinha se opondo ao teto de preços – passou a apoiar o esquema, após “salvaguardas” quanto às preocupações de Berlim de que intervir no mercado europeu de gás poderia afastar as cargas internacionais de GNL do continente.

O ministro holandês da Energia, Rob Jetten, disse ao Politico que “ainda está preocupado” com o impacto da medida e que o foco deveria estar na redução dos preços do gás para os consumidores europeus e na segurança do fornecimento. “Não estou completamente convencido de que esse mecanismo de correção de mercado seja benéfico para ambos os tópicos”, acrescentou.

Já o operador da bolsa TTF, a Intercontinental Exchange (ICE), ameaçou transferí-la da Holanda. A ICE anunciou que todas as opções devem agora ser exploradas, incluindo se um mercado eficiente na Holanda “ainda é viável”. Segundo um comunicado visto pela Reuters, para a ICE o mecanismo de correção do mercado seria imposto aos clientes e à infraestrutura de mercado sem tempo para testes sustentados e gerenciamento cuidadoso de riscos.

“PREJUDICIAL E DESNECESSÁRIO”

A Hungria classificou o “teto” como uma medida “prejudicial, perigosa e completamente desnecessária” e criticou sua adoção por ‘maioria qualificada’.

“Quando se revelar uma medida completamente desnecessária, perigosa e prejudicial para toda a Europa, todos devem ser responsabilizados”, disse o ministro das Relações Exteriores, Péter Szijjártó.

A Comissão Europeia assevera que o teto de preços será revisto regularmente e o seu funcionamento pode ser suspenso a qualquer momento se o fornecimento ficar sob risco; vendas no varejo estão excluídas.

Segundo o portal europeu, um diplomata sênior de um país pró-“teto” disse que a medida “não é suficiente e apenas uma medida de emergência temporária”, apontando que os preços do gás no atacado ainda são quatro vezes mais altos do que o normal. “Isso dá a impressão de que podemos pagar € 180 por megawatt-hora, o que não podemos”.

No auge do efeito bumerangue das sanções anti-Rússia, no verão, as cotações no TTF chegaram a até € 345 por Mwh. Preços que já arrefeceram consideravelmente, com os depósitos 84% cheios, para 115 euros por Mwh.

Entre os mais eufóricos pela aprovação do teto se distinguiu a primeira ministra fascista italiana, Giorgia Meloni, que a considerou uma “pequena grande vitória”.

Timm Kehler, CEO do grupo alemão da indústria de gás Zukunft Gas, chamou o “teto” de uma “ilusão política” – uma que não “sobreviverá ao choque de realidade” agora que é realmente a política da UE. “Em uma economia de mercado, os preços são determinados pela oferta e demanda – e não por decretos políticos”, disse ele.

“Há tantas salvaguardas que é difícil entender completamente como isso vai se desenrolar”, disse Simone Tagliapietra, pesquisadora sênior do think tank Bruegel. Todo o debate se tornou um “totem” para muitos países, disse ela – muito visível, investido de significado pelos espectadores, mas, em última análise, bastante inútil.

“O limite máximo do preço do gás é percebido em vários Estados-membros como uma bala de prata”, acrescentou, mas não “resolverá magicamente todos os nossos problemas – e seria um grande erro pensar assim”.

Enquanto isso, a concorrência ao gás norte-americano que se cuide. Depois do sistema Nord Stream 2 – os gasodutos que poderiam retomar o fornecimento de gás russo à Alemanha – ser ‘misteriosamente’ desconectado por um atentado, outro concorrente, o Qatar, acaba de ser atingido por outro assunto explosivo: a corrupção e a interferência nas instituições europeias.

No mês passado, as empresas alemãs assinaram um contrato de gás de 15 anos com a estatal QatarEnergy, garantindo 2 milhões de toneladas métricas de GNL anualmente a partir de 2026. Esse é o ano em que a primeira fase da expansão da capacidade do Qatar – um desenvolvimento do Golfo Pérsico conhecido como North East Field – entra em operação. Até o ano passado, o Qatar contribuía com 5% do abastecimento de gás ao bloco europeu.

Como registrou um jornal austríaco, o suposto escândalo de corrupção do Qatar envolvendo o Parlamento Europeu “não poderia ter vindo em um momento mais estranho para os países da UE pobres em gás – e para a Alemanha em particular”.

Papiro

(BL)