Memórias do Araguaia e da ditadura protagonizam Araras Vermelhas, de Cida Pedrosa
Cida Pedrosa iluminou a livraria paulistana Megafauna, com sua alegria de escritora que acabou de parir mais uma narrativa para embalar os brasileiros em suas memórias. A noite desta terça-feira (29), no centro de São Paulo, continuou o entusiasmo da Flip, em Paraty, onde Cida sambou com a cubana Teresa Cárdenas e Ludmilla Lis. Aqui, foi ela que nos fez dançar com suas palavras lavradas por bateia, como ouro de aluvião, em Araras Vermelhas.
A mesa da Flip no domingo (27), segundo ela disse ao PCdoB, foi de “muita emoção e chororô, nosso e da plateia”. Assim como foi palpável a emoção de Cida em dividir com os paulistanos seu novo livro-poema. “É um canto épico e lírico sobre o Araguaia. Misturo as memórias do Araguaia com as minhas de menina, lá no Bodocó”, diz a pernambucana do Sertão interior, referindo-se à guerrilha do PCdoB contra a ditadura militar, ocorrida no início dos anos 1970.
“Era uma menina que vivia a ditadura sem perceber, como todo mundo nesse país viveu de alguma forma. Mas o livro junta o que está acontecendo no mundo, também, por meio de seus quatro cantos líricos”, diz.
Durante a conversa com o público, ela contou como chegar a Recife a chocou com suas pichações nos muros contra a ditadura. “Eu nasci numa cidade que não tinha televisão. Eu morava num sítio que não tinha energia elétrica, não tinha banheiro. É desse lugar que eu vinha quando cheguei ao Recife. Foi um susto enorme. Eu via ruas pichadas com ‘tortura nunca mais! Volta Arraes’, ‘liberdade para os presos políticos’, e a pergunta foi: ‘Que diacho é isso?’”.
Depois, assistir aula sempre com um militar na porta da sala de aula ou cantar o hino nacional perfilada. Ela conta que seu irmão deu certo em Recife, levando os demais, e criando essa escola que contratava ex-presos políticos para dar aula. Tudo isso foi atravessando sua trajetória de menina. E comparece no livro. Depois, ela se torna poeta recitando em praça pública sua denúncia contra a opressão. Ali, na rua, ela também recebia os poetas jovens que saíam do cárcere para recitar, como Marcelo Mário de Melo.
Centenários e silêncios
Cida está achando “muito interessante dividir esta emoção” do lançamento no mesmo momento em que se celebra o centenário do Partido Comunista do Brasil, assim como da Semana de Arte Moderna (fora o Bicentenário da Independência). Dia 14, ela faz a festa, de novo, em Recife. Mas quer lançar o livro onde tudo aconteceu, ou seja, no Pará, em Tocantins, no Maranhão. Além de fazer o circuito de cidades de interior de Pernambuco por onde perpassam suas memórias de infância.
Juntar estas referências também foi intencional na nova obra. “O livro é muito moderno, interage para muitas fronteiras de linguagem: poesia concreta, poesia metrificada, jornalismo, prosa, memória, grande e longo poema”, justifica. Realmente, olhar para o poema, mais que ouvir, é olhar para a radicalidade com que ela estrutura a narrativa, misturando tantas referências modernistas. O escritor e professor de literatura Cristhiano Aguiar destacou este aspecto, citando a palavra que explode na página expressando a violência da guerrilha.
Cida complementou a observação do escritor dizendo de sua obsessão por experimentar a cada obra. “Sou pessoas diferentes a cada livro e não vejo sentido em me repetir”. Ela provocou risos ao dizer que, pode soar pedante, mas ela quer fazer um livro de sonetos e desconstruir a forma. “Tem gente que faz assim com o nariz para a poesia popular e o soneto. Quero desmistificá-lo e torná-lo moderno”, explicou.
“Quero muito andar com esse livro pelo Brasil, dividir e jogar luz sobre a Guerrilha, que é uma parte da história do Brasil, de que se fala muito pouco ainda”. Cida faz referência ao modo como a ditadura tentou silenciar a resistência, mutilando e desaparecendo com os corpos dos guerrilheiros, como fez com Tiradentes, Zumbi e Lampião. Este apagamento continua por meio do silêncio das elites políticas, econômicas e culturais do país sobre o assunto.
Poesia e jornalismo
Mas, nem tudo é violência explícita na poesia de Araras Vermelhas. A memória da infância está sempre dentro da literatura de Cida, assim como a tradição oral de Pernambuco. “Onde tem mais poeta que gente”, disse Aguiar, provocando a gargalhada sonora e concordante de Cida.
Como ela disse em Paraty, cresceu no Sertão do cordel, dos cantadores, do som da voz do homem que vendia tudo na rua. Ela não consegue separar sua literatura da fala. “Cada coisa que escrevo, eu leio em voz alta. Se alguma palavra sobrar, corto sem medo de ser feliz. Tem que caber no ouvido da mesma forma que cabe na página”.
Ela conta como Araras se encontra com suas outras obras e pode até fazer parte de uma “trilogia meio épica” que ela está “mancomunando” . ”Em Solo para Vialejo, eu conto a diáspora ao contrário, do mar para o sertão. Os que foram perseguidos, e vão na diáspora construir trabalho e família, e vou misturando minhas memórias pessoais. Todos os livros têm relação com o som e a imagem, com memórias. Este Araras também é uma diáspora, se você pensar em tanta gente indo para lá, em exílio, e morrerem. É uma diáspora política”.
A guerrilha é retratada no livro a partir do fio condutor da narrativa sonora e imagética do território amazônico, do povo, da saga de mais de um herói: os heróis camponeses, indígenas, guerrilheiros.
“Ao mesmo tempo, eu queria mostrar que a luta dos guerrilheiros do PCdoB, dos camponeses e tantos outros que estavam lá, não estava isolada do que acontecia no mundo”, conta a autora, expressando a verve jornalística da obra. “Embora pareça que estava isolada, toda a América vivia algo parecido. Allende é eleito, deposto e assassinado. No Uruguai começa uma ditadura, na Argentina outra. Nesse período estava se encerrando o armistício do Vietnã”, acrescenta, citando como as técnicas brutais da CIA utilizadas no sudeste asiático foram usadas, logo depois, no Bico do Papagaio. Até a geração do desbunde, desse período, ela vincula com uma resposta ao clima sufocante do autoritarismo.
Mas a poesia não para por aí. Afinal, o nome do livro também foi uma descoberta poética para ela. Ao procurar a origem de Araguaia, descobriu que significa rio das araras vermelhas. As araras vermelhas que foram para a mata defender a democracia.
Cida homenageou muitos nomes durante este lançamento. Dedicou o evento ao poeta recifense Miró da Muribeca, morto recentemente. Aos poetas Ferreira Gullar, Drumond, João Cabral, aos escritores Emile Zola e Dostoiéviski. Todos que atravessam sua escrita. E agradeceu o “auxílio luxuoso” dos escritores Osvaldo Bertolino, especialista na Guerrilha, e o camarada de lutas e de artifícios da palavra Adalberto Monteiro.
(por Cezar Xavier)