Governo edita portaria que impede novos assentamentos da reforma agrária
Para consolidar a sua política de destruição de direitos e conquistas, o governo de Jair Bolsonaro (PL) editou uma portaria que impossibilita novos assentamentos de sem-terra no país. Sob nº 2.445 de 15 de dezembro de 2022, a portaria proíbe a declaração de interesse social de áreas públicas quando houver qualquer pedido de regularização fundiária por terceiros.
Para a Defensoria Pública da União (DPU), a exigência torna inviável o avanço da reforma agrária porque bastará um pedido de regularização, mesmo ilegal ou por parte de grileiros, para impedir a primeira etapa, que é a declaração de interesse social.
De acordo com o texto, o ato administrativo editado no dia 15 de dezembro, põe a política de reforma agrária sob situação de fragilização. O documento classifica como preocupante a edição da portaria por reunir diretrizes que “inviabilizam a declaração de interesse social das áreas públicas e, em realidade, impede a criação de Projetos de Assentamentos, possibilitando a regularização fundiária de áreas griladas”.
“Percebe-se, de forma nítida, que a portaria em tela vem reforçar a política agrária do atual governo federal (2019-2022), que tem a prevalência da regularização de terras públicas usurpadas por meio da grilagem em detrimento da política Pública de Reforma Agrária”, avalia o órgão, em nota técnica.
Segundo a DPU, isso se constata pela política que “praticamente abandonou a criação de assentamentos, adotando desde o início de seu governo (2019-2022) a regularização fundiária como prioridade, seguida da titulação das terras de assentamentos já existentes”, aponta a entidade.
O documento que pede a revogação da norma, considerada como inconstitucional, foi elaborado pela DPU por meio da Defensoria Regional de Direitos Humanos do Mato Grosso (DRDH/MT) e o Conselho Estadual de Direitos Humanos do mesmo estado (CEDHMT). “As entidades classificam a reforma agrária como política fundamental para consolidação da democracia e da justiça social no país, e, por isso, pedem a revogação do ato administrativo tomado pelo Incra”, cita um trecho do documento.
“Este Conselho acompanha com preocupação diversas situações de conflitos no campo no Estado de Mato Grosso, que tem se acirrado nos últimos anos, em especial os envolvendo grilagens de terras públicas em Glebas Federais, a exemplo do quem vem ocorrendo nas Glebas Gama e Nhandú, ambas localizadas na região norte do estado”, diz outro trecho da nota”.
Segundo as entidades, áreas “onde centenas de famílias vivem acampadas há quase 20 anos, aguardando para serem assentadas nestas áreas que pertencem à União e que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA declarou interesse social em parte das mesmas”.
No Estado de MT, a maioria das áreas públicas tem pedidos de regularização fundiária por parte dos ocupantes ilegais, inclusive com o fracionamento das áreas, e solicitação da regularização fundiária em nome de terceiros, aponta a nota técnica.
Além disso, diversos processos, a exemplo da Gleba Gama, que já tiveram negados os pedidos, e agora estão tentando novamente através do Programa do Governo Federal Titula Brasil, que tem como objetivo “aumentar a capacidade operacional dos procedimentos de titulação e regularização fundiária das áreas rurais sob domínio da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária”, denunciam as entidades no documento.
“A realidade de grilagem de terras públicas não é uma especificidade deste estado, mas a realidade de todo o Brasil, em especial na Amazônia, onde milhões de hectares de terras públicas, que deveriam estar destinadas para a Política Pública de Reforma Agrária, estão ilegalmente nas mãos de poucas pessoas”, denuncia outra parte do documento.
O texto também faz críticas ao programa Titula Brasil que ajuda a “expandir o agronegócio. “[…] O Titula Brasil faz parte de uma série de medidas com o objetivo de expandir o agronegócio e a privatização de terras públicas federais, incluindo as localizadas na Amazônia Legal e as destinadas ao Programa Nacional de Reforma Agrária cujo ápice ocorreu com a edição da Medida Provisória nº 759 [10]”.
A MP em questão autoriza a venda dos imóveis da União, mas não atende a critérios legais para resguardar interesses públicos e sócias, subtraindo o poder do Estado de legislar sobre o assunto.
“A MP pelo instrumento da ‘legitimação fundiária’ permite a privatização sem nenhum critério legal, por mero ato discricionário do Poder Executivo. Possibilitam-se a regularização de condomínios de alto-padrão, loteamentos fechados em áreas federais, sem a devida exigência de contrapartidas ambientais”, diz trecho do manifesto “Carta ao Brasil – Medida provisória nº 759/2016: A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil”, do Terra Direitos, entidade que atua em defesa do direito à terra e outros interesses da sociedade civil.
De acordo com a “Carta ao Brasil, assinada por diversas entidades, um dos principais objetivos da medida provisória é a “liquidação do patrimônio da União e a entrega do patrimônio do Estado ao mercado imobiliário.
“Um dos grandes negócios da MP 759 é promover a liquidação do patrimônio da União (terras e águas federais) em prejuízo de sua função socioambiental, ou seja, a MP 759 entrega o patrimônio público nacional ao mercado imobiliário e aos grandes empreendedores público-privados”, denuncia o manifesto.
Inimigo declarado de grupos como o MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o presidente Jair Bolsonaro (PL) jogou a gestão da reforma agrária no colo da bancada ruralista e intensificou uma guinada iniciada pelo antecessor, Michel Temer (MDB).
Em meio à intensificação do estrangulamento orçamentário —de cerca de R$ 4,8 bilhões de verbas discricionárias anualmente nas gestões de Lula (PT) para R$ 614 milhões sob Bolsonaro—, o atual governo quase reduziu a zero as desapropriações de terras e os assentamentos de famílias, transferindo o foco para a entrega de títulos de propriedade, a maioria provisórios, a antigos beneficiários.
Representantes do MST e especialistas na área apontam um profundo revés na condução da reforma agrária e um sucateamento do Incra que teria sido reduzido em um mero emissor de títulos sem oferecer qualquer suporte para sustentabilidade aos assentados.
A nomeação do ruralista Nabhan Garcia para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, permite dizer que o governo colocou “a raposa para cuidar do galinheiro”. Garcia comandou por anos a UDR (União Democrática Ruralista).
Nos primeiros dias da gestão Bolsonaro, o Incra paralisou todos os cerca de 250 processos de aquisição e desapropriação de terras para a reforma agrária, o que foi visto como um sinal do desastre que seria esse governo para o financiamento da reforma agrária e o prenúncio do fim da política de criação de assentamento.
Além do desmonte orçamentário, o número de terras desapropriadas e de famílias assentadas no governo atual foi praticamente zero. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (1995 a 2010), mais de 14,5 milhões de hectares de terras foram desapropriados e 1,15 milhão de famílias assentadas.
Dados do próprio Incra informam que em 2019 existiam 111 mil hectares prontos para a reforma agrária, com capacidade para assentar 3.862 famílias, mas os processos para isso estavam paralisados.
“O Incra, infelizmente, tornou-se uma locadora rural para grileiros de terra e latifundiários”, diz Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST. Segundo ele, há 120 mil famílias acampadas à espera de desapropriação e assentamento.
Ele também critica a perda de espaço do movimento no atual governo, o que representou uma perda para a discussão das políticas da reforma agrária.
“Fecharam o diálogo, militarizaram o Incra, também sucatearam outras instituições, como Funai e tudo aquilo que tem a ver com ambiente e território nacional. Os números sob Bolsonaro são números para os latifundiários. Titulação para garantir que as terras públicas sejam griladas para os latifundiários.”
Ronilson Costa, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, diz que desde Temer, que extinguiu o Ministério de Desenvolvimento Agrário, houve prejuízo para os trabalhadores rurais e tratamento privilegiado ao agronegócio.
Para Ronilson, a simples entrega de títulos sem uma assistência aos assentados de ações de de infraestrutura que ajudem as famílias a produzir e se manter nas propriedades levará as terras de volta ao latifúndio. “Há um abandono, um esquecimento, sobretudo nos assentamentos em situação mais crítica”, prevê.
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(BL)