"O velho sistema já entrou em colapso", avalia Sergei Karaganov (reprodução)

Entrou na ordem do dia “a luta pela libertação final do planeta do jugo ocidental de 500 anos, que suprimiu países e civilizações e impôs termos desiguais, simplesmente saqueando-os, através do colonialismo, depois do neocolonialismo e mais tarde através do imperialismo globalista dos últimos 30 anos”, afirmou em artigo de opinião na RT Sergei Karaganov, presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, professor e economista.

A crise – ele acrescentou – não começou em 2022, começou em meados da década de 1990 – assim como a Segunda Guerra Mundial realmente começou com o Tratado de Versalhes pós-Primeira Guerra Mundial, que foi injusto e lançou as bases para o que mais tarde aconteceu.

Assim, o conflito na Ucrânia, “não se trata apenas de destruir o velho mundo, mas também de criar um mundo novo, mais livre, mais justo, politicamente e culturalmente pluralista e multicolorido”.

“O significado global da luta na Ucrânia é o retorno da liberdade, dignidade e autonomia ao não-ocidente (e propomos chamá-lo por outro nome – a Maioria Global, que antes era reprimida, roubada e culturalmente humilhada). E, claro, uma parte justa da riqueza do mundo”.

Para Karaganov, quase três décadas atrás, o Ocidente “se recusou a fazer um acordo justo” com a Rússia pós-soviética e em vez disso criou “um novo sistema de dominação baseado nas chamadas ‘regras’”.

EXPANSÃO DA OTAN

Mas – sublinhou – o “imperialismo liberal global”, como denominado por outros com mais precisão, “foi construído na areia”. “Tenho registrado na memória desde 1996-1997 que um mundo baseado na expansão da Otan e dominação ocidental levaria à guerra”.

A hegemonia dos EUA começou a desmoronar em 1999, quando, num torpor de impunidade, violou a Iugoslávia. Em euforia, foi ainda mais longe: entrou no Afeganistão, depois no Iraque e perdeu, desvalorizando sua então superioridade militar e liderança moral, apontou o economista.

Diante do que a Rússia se convenceu – após a Iugoslávia, Afeganistão, Iraque e a retirada dos EUA do Tratado ABM – de que “era impossível construir uma paz justa e duradoura com o Ocidente e começou a restaurar seu poderio militar”.

“Assim, mais uma vez, como Moscou havia feito no passado, começou a chutar as bases da dominação ocidental nas esferas econômica, política e cultural global, que se baseava na superioridade militar. Esse domínio durou 500 anos e começou a desmoronar na década de 1960. Na década de 1990, por causa da queda da URSS, parecia ter voltado, mas agora Moscou começou a abalar seus alicerces novamente”.

Por outro lado, houve a ascensão da China. Então, “um erro ainda mais surpreendente foi cometido”: no final dos anos 2000, começaram a restringir a China e a Rússia simultaneamente, “empurrando-os para um único bloco político-militar que combinava seus interesses centrais”.

JANELA DE OPORTUNIDADE DESPERDIÇADA

A crise econômica de 2008, que ocorreu no contexto dos processos mencionados, minou a confiança na liderança moral, econômica e intelectual do Ocidente, registrou o economista. Entre 2008 e 2013, na percepção de Karaganov, houve uma “uma janela de oportunidade para entendimento com a Rússia e a China sobre os termos do novo mundo” – “mas não foi aproveitada”.

Desde 2014, o bloco encabeçado pelos EUA intensificou sua política ativa de contenção da China e da Rússia, incluindo a promoção de um golpe de Estado em Kiev para preparar guerras por procuração para minar Moscou. Perdendo no terreno militar, político e até moral, o Ocidente “partiu em um contra-ataque histérico”, com a guerra se tornando inevitável, a questão era “onde e quando”, observou Karaganov.

O que levou a Rússia a desencadear sua operação especial na Ucrânia, a qual tinha vários objetivos: “impedir que o Ocidente criasse uma ponte ofensiva militar nas fronteiras da Rússia, que estava tomando forma rapidamente, e preparar o país para os efeitos de longo prazo do conflito e das mudanças rápidas”.

Isso – ressaltou Karaganov – “requer um modelo diferente de sociedade e economia – um modelo de mobilização. O próximo objetivo é purgar as elites de elementos pró-ocidentais e ‘compradores’”.

O FUTURO QUE VEM

Para o economista, apesar do período perigoso e até risco de uma terceira guerra mundial, o atual conflito permitirá, se assim escolhermos, “um mundo de criação construtiva e a conquista da liberdade, justiça e dignidade pelos povos e nações”.

“O velho sistema de instituições e regimes já entrou em colapso (liberdade de comércio e respeito à propriedade privada). Enquanto isso, instituições como a OMC, o Banco Mundial, o FMI, a OSCE e a UE estão, receio, chegando aos seus derradeiros anos”.

Começam – ele destacou – “a surgir novos corpos aos quais pertence o futuro. Eles são a SCO, ASEAN+, a Organização da Unidade Africana e a Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP). O Banco Asiático de Desenvolvimento já está emprestando muitas vezes mais do que o Banco Mundial”.

“Nem todas as novas instituições sobreviverão, e esperemos que algumas delas sobrevivam, especialmente no sistema da ONU, que precisa urgentemente de reforma para representar principalmente a Maioria Global no Conselho de Segurança, e não o Ocidente”.

LUTA PELA PAZ

Mas há que combater por esta bela visão, antes de tudo, prevenindo uma terceira guerra mundial, assinalou o acadêmico. Ele adverte que foi na Europa que as duas primeiras guerras mundiais foram desencadeadas e que, em uma era de mudanças rápidas, os conflitos ocorrerão. Portanto – ele convoca – “a luta pela paz deve ser um dos principais temas de nossa comunidade intelectual e do mundo em geral”. “Temo que este novo mundo que está tomando forma agora seja criado além da minha vida intelectual ou física. Mas meus jovens colegas e certamente seus filhos vão ver”, concluiu.

Papiro (BL)