Com o gasoduto Nord Stream fechado, indústria europeia paga mais caro pelo gás (AFP)

Depois de ter endossado todas as sanções dos EUA contra a Rússia, o bloco europeu começa a admitir que é sua indústria que está diante de uma “ameaça existencial”, sob os altos preços do gás e do novo pacote de subsídios e corte de impostos de US$ 369 bilhões dos EUA para a ‘reindustrialização verde’ – veículos elétricos, semicondutores, painéis solares, hidrogênio e alta tecnologia em geral -, isto é, deslocar para os EUA os fabricantes, assinado em agosto pelo presidente Joe Biden e que entrará em vigor em 1º de janeiro.

Assim, o ministro [‘comissário’] da Indústria da União Europeia, Thierry Breton, advertiu – conforme o portal ‘Politico’ – que o novo pacote de Biden representa um “desafio existencial” para a economia da Europa. Aliás, mais propriamente à indústria automobilística alemã e francesa, além de outros setores industriais intensivos em energia. “A Europa está enfrentando um duplo golpe de martelo dos EUA”, ele acrescentou.

No final de outubro, o presidente francês Emmanuel Macron já havia sido bastante explícito sobre qual era o “primeiro golpe de martelo” dos EUA: “O gás americano é 3-4 vezes mais barato no mercado doméstico do que o preço que eles oferecem aos europeus. Esses são padrões duplos”. Ele pediu que esse “tema” – preço de monopólio, segundo os mais realistas – deveria ser objeto de discussão, por estar em jogo a “sinceridade no comércio transatlântico”.

Ou seja, trata-se de uma chantagem aberta sobre as empresas europeias, que estão sob custos de energia incapacitantes. Nesse ínterim, a muito conveniente explosão do sistema de gasodutos Nord Stream apertou ainda mais o garrote vil no pescoço europeu.

“As autoridades da UE temem que as empresas agora enfrentem uma pressão quase irresistível para transferir novos investimentos para os EUA em vez da Europa”, registra o portal, que acrescenta que o bloco europeu “está em modo de emergência e está preparando um grande impulso de subsídios para evitar que a indústria europeia seja eliminada por rivais americanos”, segundo lhe foi dito por “dois altos funcionários da UE”.

O que já vem ocorrendo: a montadora Tesla suspendeu os planos para uma nova fábrica de baterias na Alemanha e, em vez disso, irá investir nos EUA; a siderúrgica ArcelorMittal fechou parcialmente as operações na Alemanha.

Ainda segundo Politico, “a Comissão Europeia e países como França e Alemanha perceberam que precisam agir rapidamente se quiserem evitar que o continente se transforme em um deserto industrial”. E está trabalhando em “um esquema de emergência para canalizar dinheiro para as principais indústrias de alta tecnologia”.

Em suma, as empresas europeias estão sendo chantageadas por Washington de que, se querem sobreviver pagando um preço de energia “4-5 vezes menor”, têm que se mudar de mala e cuia para território norte-americano.

A “solução provisória” que está sendo preparada em Bruxelas [diante de tal ultimato] – acrescenta o portal – “é combater os subsídios dos EUA com um fundo próprio da UE”, conforme relataram “dois altos funcionários” europeus.

Tratar-se-ia de um “Fundo Europeu de Soberania”, já mencionado no discurso de setembro do Estado da União da presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, para “ajudar as empresas a investir na Europa e atender a ambiciosos padrões verdes”.

“Altos funcionários disseram que a UE teve que agir com extrema rapidez, pois as empresas já estão tomando decisões sobre onde construir suas futuras fábricas para tudo, desde baterias e carros elétricos até turbinas eólicas e microchips”.

O comissário [ministro] da UE, Breton, especialmente, liderou o grupo ao soar os alarmes. “Em uma reunião com líderes da indústria da UE na segunda-feira, Breton emitiu seu alerta sobre o ‘desafio existencial’ para a Europa da Lei de Redução da Inflação, de acordo com as pessoas presentes”.

Breton disse que agora é uma questão de extrema urgência “reverter o processo de desindustrialização em curso”. O ministro europeu da Indústria estava “ecoando as ligações de líderes empresariais de toda a Europa alertando sobre uma tempestade perfeita” se formando para os fabricantes.

“É um pouco como se afogar. Está acontecendo silenciosamente”, disse o presidente da BusinessEurope, Fredrik Persson.

Ao The Atlantic, o economista da UCLA, François Gérolfe, assinalou que são várias formas de subsídios a empresas industriais: subsídios diretos para a construção de fábricas bem como pagamentos a famílias que compram mercadorias, por exemplo, carros elétricos fabricados na América do Norte.

Segundo Politico, com um intervalo tão curto para evitar um confronto comercial transatlântico sobre as indústrias verdes, Berlim está frustrada com o fato de Washington não estar oferecendo um acordo de paz. No início deste mês, o governo de Scholz teria feito uma abertura a Washington sugerindo que um novo acordo comercial UE-EUA poderia ser negociado para resolver as diferenças, mas essa proposta “foi rapidamente rejeitada”.

Alertas de uma guerra comercial já estão ofuscando a preparação para uma reunião de alto nível UE-EUA em Washington em 5 de dezembro. Macron irá a Washington no dia 1º de dezembro se reunir com Biden. Para o portal, o embate em curso dificulta manter a unidade das ‘democracias’ “em meio à guerra da Rússia e aos crescentes desafios impostos pela China”.

O confronto também explica a viagem de Scholz a Pequim no início de novembro, justo no dia em que o secretário de Estado Blinken foi a Berlim, quando o primeiro-ministro alemão foi recebido com tapete vermelho, acompanhado de vários dos principais líderes industriais alemãos. Na véspera, Scholz havia enfatizado que a Alemanha “não tem qualquer intenção de se dissociar da China” e que não há nada que justifique “os apelos de alguns para isolar a China”.

PESADELO

O portal classificou a Lei de Redução da Inflação de Biden como “um pesadelo particular para as nações automobilísticas da UE – como a França e a Alemanha – pois incentiva os consumidores a ‘comprar americano’ quando se trata de veículos elétricos”.

Para Bruxelas, a medida de Biden implica no “enfraquecimento do livre comércio global”, e o bloco europeu quer fazer um acordo no qual suas empresas possam desfrutar dos mesmos benefícios americanos.

“Com uma solução diplomática parecendo improvável e Bruxelas querendo evitar uma guerra comercial total, uma corrida aos subsídios agora parece cada vez mais provável como um contencioso Plano B”, esclarece o portal.

Segundo Politico, estão em curso articulações para fechar a posição do bloco europeu a respeito, sendo vital “garantir o apoio da Alemanha e dos comissários economicamente mais liberais, como o chefe do Comércio, Valdis Dombrovskis, e a da Concorrência, Margrethe Vestager.

A definição poderá vir de uma reunião de ministros do comércio da UE na sexta-feira. A França há muito pede um contra-ataque contra Washington, canalizando fundos estatais para a indústria europeia.

Note-se ainda que o objetivo central de Biden com o novo pacote, apesar do nome de ‘lei de combate à inflação’, é tentar fortalecer a economia norte-americana nos setores de ponta diante do confronto com o desenvolvimento da China – mas o faz às custas dos europeus, como estes começam a chiar.

BERLIM E PARIS PEDEM ‘POLÍTICA INDUSTRIAL’

Na terça-feira, o ministro da Economia alemão, Robert Habeck, e seu colega francês, Bruno Le Maire, emitiram uma declaração conjunta para pedir uma “política industrial da UE que permita que nossas empresas prosperem na competição global, especialmente por meio da liderança tecnológica”.

“Queremos coordenar estreitamente uma abordagem europeia para desafios como a Lei de Redução da Inflação dos Estados Unidos”, enfatiza o comunicado.

A declaração conjunta franco-alemã vem depois que o Politico informou no mês passado que os dois países concordaram que a UE retaliaria contra os EUA se continuasse com seu plano de subsídio aos seus monopólios. No entanto, na época, eles esperavam resolver sua disputa por meio da Força-Tarefa EUA-UE sobre a Lei de Redução da Inflação, lançada em 26 de outubro.

Bernd Lange, presidente do comitê de comércio do Parlamento Europeu, advertiu que “uma vez que a lei seja implementada, será tarde demais para conseguirmos qualquer mudança”. Ele afirmou que, caso Washington e Bruxelas não cheguem a um acordo, o bloco entrará com uma ação na OMC contra Washington.

DUMPING

Como pano de fundo para a iniciativa de Biden, o brutal aumento de quase 300% em 2022, segundo a revista Time, dos preços básicos da eletricidade na Europa, sob o impacto das sanções lançadas contra a Rússia e seu petróleo e gás. Segundo a revista Fortune, o preço atual da eletricidade na Europa é de 60 centavos por quilowatt-hora, cinco a dez vezes mais alto do que na maioria dos Estados da América.

Para a UE, a transferência de capacidade de produção da Europa não é um processo natural impulsionado pela escolha do mercado, mas o resultado da intervenção direta de Washington na cadeia de abastecimento global. Realmente, não se pode chamar a explosão do Nord Stream propriamente como um “processo natural impulsionado pela escolha de mercado”. Em um livro branco, o bloco europeu salientou que a lei de Biden viola as regras do comércio internacional.

MULTILATERALISMO ASSOMBRA SCHOLZ

Nem a pandemia de Covid-19, nem a ofensiva da Rússia contra a Ucrânia desempenharam um papel fundamental na atual crise econômica na Europa, alegou o premiê Scholz, mas sim o desenvolvimento da Ásia, alertando que provavelmente não haverá retorno aos bons velhos tempos em futuro previsível.

Falando na terça-feira em um fórum em Berlim organizado pelo jornal Suddeutsche Zeitung, o premiê disse que, durante anos, os países da América do Norte e da Europa desfrutaram de uma combinação de crescimento estável, baixa inflação e altas taxas de emprego. Isso, porém, segundo ele, foi uma “exceção econômica” que não pode durar mais.

“Um mundo cada vez mais multipolar está se organizando agora, fundamentalmente novo”, um desenvolvimento que é melhor visto no sudeste da Ásia, reconheceu Scholz. Ele conclamou a Alemanha e outras nações europeias a abraçarem mais comércio com as economias emergentes.

“A guerra da Rússia [contra a Ucrânia] e as consequências econômicas da pandemia [Covid-19] podem ter acelerado” o fim desta era, opinou o dirigente. Mas, acrescentou, “não foram o gatilho para isso”.

Scholz continuou explicando que, por décadas, países como Vietnã e Indonésia foram vistos principalmente como uma fonte de produtos baratos para os mercados europeu, americano e, cada vez mais, chinês. Mas, as mesmas nações asiáticas experimentaram um aumento explosivo no número de pessoas pertencentes à classe média e seu poder de compra aumentou proporcionalmente.

Há meses, mais sucinto, o ministro das Relações Externas do bloco europeu, Josep Borrell, admitiu que a fortaleza econômica europeia, aliás, o “jardim” europeu, foi construída com base no gás e matérias primas russas e no trabalho chinês baratos – e isso acabou.

Segundo a RT, Scholz asseverou aos empresários alemães que eles não têm nada a temer, pois seus produtos continuarão em alta demanda neste novo mundo e eles só podem ganhar mais. A Alemanha, acrescentou, precisa buscar novos fornecedores e mercados para seus produtos. O que não o impediu de insistir em culpar a Rússia pela alta dos preços do gás causada pelas sanções decretadas por Washington e pela sabujice dos europeus – inclusive de seu governo.

Papiro

(BL)