Padre critica uso da pauta moral como “voto de cabresto religioso”
Apesar de todas as dificuldades concretas vividas pela maior parte da população brasileira sob o governo de Jair Bolsonaro (PL)— como a fome, a miséria, o desemprego, os efeitos e os traumas da pandemia — foram os temas religiosos e morais que ganharam maior proeminência nestas eleições, sobretudo no segundo turno. E o segmento evangélico, majoritariamente alinhado ao bolsonarismo, tem sido o principal foco de preocupação, seja pelo radicalismo de parte considerável de seus líderes e fiéis, seja por sua permeabilidade à pauta dos costumes, explorada à exaustão pela extrema-direita, e às fake news envolvendo essa temática.
Como forma de buscar reduzir a influência do bolsonarismo e o impacto de suas mentiras nesse público, o ex-presidente Lula (PT) lançou carta especialmente voltada aos evangélicos nesta quarta-feira (19). Trecho do documento assinala que o Brasil vive “um período em que mentiras passaram a ser usadas intensamente com o objetivo de provocar medo nas pessoas de boa fé, e afastá-las do apoio a uma candidatura que justamente mais as defende. Por isso senti a necessidade de reafirmar meu compromisso com a liberdade de culto e de religião em nosso País”.
O cenário de acirramento dos ataques bolsonaristas e sua influência neste segmento foi também objeto de análise do padre Paulo Adolfo Simões, diretor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (Cefep), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em entrevista à BBC Brasil, ele destacou que “a extrema-direita sabe que o eleitor evangélico segue um determinado pastor. E o eleitor católico que pertence a um grupo tradicionalista, normalmente ligado à Renovação Carismática [movimento ultraconservador do catolicismo], esse eleitor é muito fiel a seu chefe. Ele vota em quem manda o padre, o pastor, o guru”.
Assim, diz, surge um novo perfil de religiosos que acaba servindo a determinados interesses — no caso atual, ao bolsonarismo. “Eles trazem para o debate a pauta moral, que é para capturar os votos desses rebanhos. É o voto de cabresto religioso. Os fiéis de determinada igreja, de determinado coletivo de católicos vão todos para aquele candidato. E então entra o populismo: o político percebe qual a índole do seu eleitorado e passa a assumir o discurso daquele grupo. Nem sempre ele acredita nisso.
Esse eleitorado, aponta, “é composto por grupos normalmente com baixa formação cristã no sentido crítico. É uma formação que vai mais na linha de um treinamento para repetir alguns chavões”.
É nesse cenário e nesse perfil de público que vicejam as fake news, especialmente sobre temas morais; tal proliferação contribui não apenas para tentar desconstruir a candidatura de Lula como, também, para tirar do foco as questões realmente importantes para a sociedade que são o ponto fraco de Bolsonaro.
“Quando você traz a pauta de costumes, fala que um candidato é a favor do aborto, fala que um candidato vai colocar banheiro unissex nas escolas, fala essa bobeira toda, essas fake news de grupos de WhatsApp, você não discute as grandes questões do país”, diz Simões. E acrescenta: “Não se discute a fome, a pobreza, o desmonte das políticas públicas, o desmonte e o descrédito das instituições que é o mais sério que essa extrema-direita faz. Isso é muito grave. A pauta de costumes é a cortina de fumaça para que não se pautem questões sérias e, mais ainda, não se apresentem programas de governo”.
Simões também rechaça a falsa equivalência entre os dois campos em disputa, em geral apresentada nos grandes meios de comunicação como uma “polarização”, como se houvesse dois pólos opostos, mas correspondentes, o que não é verdade. “No Brasil, eu percebo que, politicamente, não temos uma polarização. Temos uma extrema-direita, violenta e tal, mas não temos uma extrema-esquerda, ao menos não uma extrema-esquerda que seja representativa” .
Ele completa explicando que “temos um campo representado pelo candidato Lula, pelo PT, que congrega outros partidos e inclui hoje muitos que defendem políticas liberais, que são mais de centro. São políticas de centro. Não temos uma extrema-esquerda militante, então a polarização é complicada de ser analisada”.