A startup em Paraisópolis onde Tarcísio se abrigou contra o suposto tiroteio durante agenda. Foto de Acervo Pessoal

Um incidente sem maiores consequências para o candidato a governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), parece estar se tornando um pesadelo na reta final de campanha. Uma entrevista do experiente repórter-cinematográfico Marcos Andrade, à Folha de S. Paulo, único a filmar o suposto tiroteio para a Jovem Pan, está levantando perguntas complicadas.

Aparentemente, durante uma agenda de campanha na comunidade de Paraisópolis, Zona Sul da capital paulista, no dia 17, houve um estranhamento entre policiais militares que faziam a segurança do candidato e supostos bandidos da favela. O choque gerou um tiroteio que acabou com a morte de um jovem de 27 anos. A agenda foi imediatamente interrompida, e entrevista coletiva do secretário de Segurança Pública de São Paulo, general João Camilo, descartou a hipótese de atentado à campanha. 

O próprio candidato estimulou, no entanto, a guerra de narrativas nas redes sociais ao falar em “questão territorial”, “um ato de intimidação”, “um recado claro do crime organizado de que não somos bem-vindos ali”. Wallace Rodrigues, fundador da organização visitada pelo candidato, diz que Tarcísio sequer havia sido convidado para o evento.

A campanha de Jair Bolsonaro (PL), à noite, já sugeria a possibilidade de Tarcísio ter sido “atacado por criminosos”, tese que não tem comprovação pelas forças de segurança do Estado. A agilidade com que os memes de internet circularam naquela tarde também surpreende. Parecia tudo já estar engatilhado para explorar o “atentado político”. Em várias oportunidades, a rede de desinformação da campanha bolsonarista buscou associar o petismo e seus candidatos ao crime organizado. 

Curiosamente, o episódio que poderia ser explorado como um atentado político arrefeceu e sumiu das redes. Até que vem a público a entrevista do cinegrafista e outras consequências laterais.

O que arapongas fazem na cena?

Uma das revelações surpreendentes do cinegrafista é a de que agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) agiram no episódio. Numa entrevista no mesmo dia do incidente, o candidato adversário Fernando Haddad (PT), disse que não era acompanhado sequer por policiais militares em sua campanha.

Com a situação de pânico generalizado em meio ao tiroteio, o jornalista de cobertura de agenda de campanha acabou se adiantado a querer filmar o tiroteio. Andrade é conhecido por seu trabalho em situações de risco e violência. Enquanto todos se escondiam, Marcos Andrade filmou tudo de cima e depois ainda rumou em direção a confusão, em que um corpo jazia executado. 

É neste momento que ele é abordado por um araponga da Abin, armado e com distintivo, que pede para ele não gravar a cena. O agente “pede reforço” enquanto outro agente tenta novamente impedi-lo de gravar. Imediatamente chega uma van e leva o cinegrafista. A princípio ele acredita estar sendo retirado de uma cena de perigo.

Para que levar o repórter a uma base de campanha contra sua vontade?

Andrade achava que estava apenas sendo afastado de uma área de perigo e que seria desembarcado em segurança. Em vez disso, a van não parou. Foi até um quartel-general da campanha, onde ele foi convocado a um lugar reservado para uma conversa. 

Por que era tão primordial apagar o que foi filmado?

Estranhando o que acontecia, Andrade gravou os áudios com mais esse agente da inteligência federal, identificado como Fabrício Cardoso de Paiva, em que é ordenado que apague as imagens captadas. Andrade suspeita que Tarcísio acompanhou a conversa. O áudio diz “você tem que apagar” e “não pode divulgar isso não”. As imagens, porém, já tinham sido repassadas à redação e ido ao ar.

Na opinião dele, as imagens teriam flagrado alguém no local do tiroteio que não deveria estar. Ele lembra de estranhar que tinha polícia demais envolvida, entre federais, arapongas e militares, praxe apenas para presidentes da República. Não dá para distinguir quem é quem nas imagens.

Quem deu a ordem para apagar imagens?

Segundo nota da campanha do bolsonarista, o pedido para não enviar as imagens tinha o objetivo de “não expor as pessoas que estavam lá”. No entanto, a própria campanha admite que não poderia impedir o exercício profissional do jornalista. 

Qual o benefício de eliminar imagens de uma operação policial?

Se houve orientação para apagar imagens, haveria favorecimento material para que alguém cometa um crime e saia impune. Esta é uma das questões que emergem quando um pedido inapropriado desse é feito. Quem tiraria proveito do sumiço das imagens?

As imagens poderiam ter capturado um tiroteio falso? Neste caso, seriam prova de um crime de falsidade ideológica. Capturaram agentes de segurança que não deveriam estar no local? Isto também precisaria ser investigado. Se alguém foi executado na cena do crime, a câmera pode ter capturado se estava armado ou não. Para todas estas hipóteses a filmagem seria uma evidência bem vinda.

Não haveria, portanto, justificativa alguma para as imagens serem intencionalmente destruídas. Isto, por si só, poderia ser um crime de destruição de provas.

Por que não sabemos se o jovem executado estava armado?

O Grupo Tortura Nunca Mais cobrou que a Ouvidoria das Polícias de São Paulo acompanhe a investigação da morte de Felipe Silva de Lima, 27 anos. Integrantes da organização de direitos humanos enxergam a possibilidade de execução já que não há sinais de confronto.

Felipe passava de moto pelo local com outro jovem. Com a execução, ficou a narrativa de um confronto, em que ele representava ameaça ao candidato. A entidade reclama que a Polícia Civil não apresentou nenhum esclarecimento sobre o caso, nem oferece dados do andamento das investigações. O Tortura Nunca Mais lembra que a polícia não esclareceu até hoje se o rapaz morto estava armado ou não.

Em comunicado enviado à Ponte Jornalismo, a Ouvidoria das Polícias de São Paulo afirmou que vai pedir à Polícia Civil as conclusões sobre o caso e que requisitou informações detalhadas das investigações em curso. Cópias de possíveis imagens captadas por meio de Câmeras Acopladas aos Policiais (COPs) também foram solicitadas, segundo a ouvidoria.

Por que um policial teria alterado a cena da execução?

O Boletim de Ocorrência lavrado pela Polícia Civil após o episódio traz a informação que um dos policiais que participaram da ocorrência, afirma que o tenente Ronald Quintino Correa Camacho foi até a rua Manoel A. Pinto, onde o corpo do jovem estava e retirou uma lista de objetos da cena do crime, o que configuraria fraude processual.

“Um coldre, celular, relógio, um carregador de pistola, além de diversos cartuchos e estojos, que arrecadou no local, afirmando que seria para que não fossem perdidos ou subtraídos por populares”, informa o policial militar no Boletim de Ocorrência.

A alteração da cena comprovada pelo próprio documento pode evidenciar uma armação com cooperação policial. Agora, existe dúvida se houve realmente um tiroteio, o que demanda urgência nas imagens das câmeras dos uniformes policiais. Felipe teria sido morto apenas para forjar um atentado à segurança do candidato?

Por que depois da entrevista, a campanha de Tarcísio teria pedido a demissão do cinegrafista?

Depois de tanta dúvida sobre o fato em si, e o incomum transfer do repórter por agentes da Abin, as coisas pioram. 

Após o caso ser revelado pela imprensa, Andrade diz que ele foi chamado por seus superiores para conversar, e foi informado que a equipe de Tarcísio teria pedido a demissão dele. A emissora teria sugerido que ele gravasse um vídeo para o candidato. Quando Andrade negou, o chefe dele disse que ele teria de fazer a gravação porque “jogou o nome da Jovem Pan na lama”.

A campanha nega a pressão sobre a emissora, que nega que a campanha tenha tentado restringir as imagens.

Por que o repórter teria que gravar um vídeo para a campanha?

O profissional diz que a empresa bateu o pé contra sua demissão. Mas teriam pedido para ele gravar um vídeo para o candidato, talvez para usar na campanha e evitar o desgaste com a entrevista. A empresa não teria coagido o profissional, apenas sugerido o vídeo. Ele não sabe qual seria o conteúdo do vídeo.

Com toda a pressão, Andrade pediu rescisão de contrato com a Jovem Pan. Ele diz temer as consequências do episódio para a integridade física de sua família. Para ele, a entrevista com detalhes do que ocorreu visa resguardá-lo de algum risco.

(por Cezar Xavier)