Governo inglês definha e Truss demite ministro para ganhar tempo
O governo conservador está “podre até o âmago”, afirmaram sindicatos e partidos de oposição britânicos, diante da troca de ministro do Tesouro (‘chanceler’) anunciada pela primeira-ministra Liz Truss na sexta-feira (14), em meio a pedidos pela sua renúncia, onda de greves contra a queda do poder aquisitivo com centenas de milhares, queima de contas escorchantes de energia em manifestações e quase colapso da libra esterlina e dos títulos soberanos no mês passado.
Colapso que só não ocorreu devido à intervenção do Banco da Inglaterra, o BC inglês, para salvar a moeda britânica e fundos de pensão pendurados em derivativos. No lugar do aprendiz de feiticeiro Kwasi Kwarteng e seu fracassado “mini-orçamento”, cujo carro-chefe era os cortes de impostos dos mais ricos bancados com endividamento público e o corte dos gastos sociais, Truss nomeou o ex-ministro da Saúde, Jeremy Hunt.
Truss também se viu forçada a abandonar os planos de descartar o aumento do imposto sobre as corporações de 19% para 25% a partir de abril de 2023.
Como registrou o jornal progressista Morning Star, poucas horas antes de chamar Kwarteng de uma visita oficial aos EUA para demiti-lo, Truss havia insistido que estava “em sintonia” com seu ministro sobre os planos amplamente criticados de usar dinheiro emprestado para financiar cortes de impostos para os mais ricos, sob a alegação de que isso “aumentaria o crescimento”.
“Liz Truss demitiu seu chanceler por executar as políticas de Liz Truss – um conjunto de políticas que levou à turbulência nos mercados, uma corrida aos fundos de pensão e altas taxas de hipoteca para proprietários de imóveis em todo o país”, afirmou o dirigente trabalhista Jon Ashworth à BBC. Com 38 dias, a presença de Kwarten à frente das finanças britânicas foi a segunda mais curta da história.
O ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn tuitou: “Enquanto Liz Truss demite Kwasi Kwarteng por implementar as políticas econômicas dela, milhões de pessoas ainda estão esperando por um plano para enfrentar a emergência do custo de vida. Não importa quantos chanceleres eles passem, este governo conservador está podre em seu âmago.”
Fora Truss
Até mesmo dentro dos “Tories” – como são conhecidos os conservadores ingleses – cresce a pressão pelo afastamento de Truss, que tomou posse há menos de seis semanas, no lugar de Boris Johnson, torrado por sucessivos escândalos.
O principal trunfo para Truss ser eleita na disputa interna nas hostes conservadoras foi sua agressiva atitude anti-Rússia – era a ministra das Relações Exteriores -, em que sequer faltou uma declaração por ir à guerra nuclear, bem como suas caras e bocas de a nova clone de Madame Thatcher.
A secretária-geral da principal central sindical inglesa, a TUC, Frances O’Grady, disse que as últimas tentativas da primeira-ministra de permanecer no cargo fariam pouca diferença para a maioria das pessoas, já que o “orçamento kamikaze dos conservadores já custou milhões” às famílias.
“A meia volta não ajudará as famílias já atingidas por hipotecas mais altas e preços mais altos e demitir o chanceler por implementar os planos da primeira-ministra não é a mudança total de direção de que precisamos”.
O’Grady denunciou que “a primeira prioridade desse governo foi cortar impostos para os ricos e grandes empresas e remover o limite dos bônus dos banqueiros”.
“Precisamos de um governo que faça a coisa certa – começando com o aumento dos salários, colocando mais dinheiro nos bolsos das famílias trabalhadoras e protegendo nossos serviços públicos”, sublinhou. “É assim que paramos a recessão que se aproxima e protegemos as famílias nesta emergência de custo de vida.”
“Faça a coisa certa e renuncie”
A secretária-geral do sindicato Unison, Christina McAnea, pediu a Truss que faça “a coisa certa e renuncie”. “Se a primeira-ministra tivesse ouvido alguém com conhecimento de economia ou um pouco de bom senso, o país não estaria em uma bagunça tão profana”, acrescentou.
“Sinos de alarme soarão nos serviços públicos do Reino Unido”, assinalou, denunciando que quando Truss fala de serviços-chave mais eficientes, “isso é código para mais cortes”.
“O NHS [o SUS britânico] está de joelhos e sua equipe está sem chão. A maneira de torná-lo mais eficiente é investir mais em serviços e em sua força de trabalho, dar vida à nossa instituição mais amada e enfrentar o atraso. Se Liz Truss leva a sério a restauração da estabilidade, ela deve renunciar”, acrescentou.
Há uma rebelião aberta no Partido Conservador, ameaçado de uma derrota fragorosa nas urnas. Um deputado chamou o ministério de Truss de “jihadistas libertários que estão destruindo o partido”. Robert Halfon, presidente do comitê seleto de educação, acusou-a de “destruir os últimos dez anos de governo conservador”.
Trabalhistas, liberais democráticos e nacionalistas escoceses (SNP) estão pedindo uma eleição geral. “O que precisamos não é apenas a mudança de ministro do Tesouro, precisamos de uma mudança de governo”, disse Ashworth.
Ex-ministro da Saúde, Hunt vem sendo cobrado a deter o desmonte no NHS, com o Royal College of Nursing (RCN) instando-o a “agir rápido para conter o êxodo” de médicos e enfermeiros do NHS, prejudicado pela austeridade.
Ele foi acusado também de “arruinar o serviço de saúde” ao impor um contrato de médicos juniores amplamente criticado enquanto secretário de Saúde entre 2012 e 2018.
“A enfermagem está no ponto de ruptura. Uma maneira simples de recrutar e reter mais pessoal de enfermagem é pagá-los de forma justa”, ressaltou o secretário-geral da RCN, Pat Cullen.
Congelem os lucros, não as pessoas
No início do mês, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas em 50 cidades inglesas, como Londres, Plymouth, Liverpool, Aberdeen e Birmingham, para repudiar as escorchantes contas de luz e gás, um efeito colateral das sanções contra o gás e petróleo russos decretadas por Washington, com multidões exigindo: “congelem os lucros, não as pessoas”.
Nas manifestações os cidadãos queimaram extorsivas contas de eletricidade, que quase dobraram em relação ao ano passado, aos gritos de “não temos como pagar, não pagaremos, não pagamos”.
Como assinalou anteriormente o Morning Star, o núcleo do plano econômico de Truss segue intocado: o corte em valor real dos gastos com programas sociais e arrocho salarial aos servidores públicos.
Com uma inflação que já passa de 10% e ameaça chegar a 18% até o fim do ano, pelo plano de Truss os orçamentos do governo não serão atualizados pela inflação – o que equivale a um corte de £ 18 bilhões. Pelo mesmo artifício, há um corte de £ 10 bilhões em termos reais nos benefícios sociais.
Fundos de pensão quase beijam a lona
No dia 23 de setembro, o anúncio de aumento da dívida pública, para financiar corte de impostos para os ricos, levou à derrubada da libra esterlina e dos títulos do governo do Reino Unido, fazendo com que os rendimentos de algumas dessas dívidas disparassem à taxa mais rápida já registrada.
O que colocou enorme pressão sobre muitos fundos de pensão, que estavam encalacrados nos derivativos. Segundo especialistas, o segmento onde o problema foi maior corresponde a um mercado de US$ 1 trilhão.
Como o preço dos títulos do governo caiu, os fundos foram solicitados a desembolsar bilhões de libras em garantias – a “chamada de margem” para as apostas em derivativos. Em uma disputa por dinheiro, os gestores de investimentos foram forçados a vender tudo o que podiam – incluindo, em alguns casos, mais títulos do governo. Isso elevou os rendimentos ainda mais, provocando outra onda de chamadas colaterais.
De acordo com o Banco da Inglaterra (BoE), o movimento nos rendimentos dos títulos antes de intervir foi “sem precedentes”. O movimento de quatro dias em títulos do governo do Reino Unido de 30 anos foi mais que o dobro do que foi visto durante o período de maior estresse da pandemia.
Como registrou uma consultoria de pensões britânica, XPS Pensions Group, “todo mundo estava querendo vender e não havia comprador”. O BoE entrou em campo, com a promessa de comprar até £ 65 bilhões (US$ 73 bilhões) em títulos, se necessário.
Isso estancou a sangria e deteve uma “espiral de auto-reforço” e “instabilidade financeira generalizada”, como chegou a temer o BoE. Em uma carta ao chefe do Comitê do Tesouro do Parlamento do Reino Unido, o BC inglês asseverou que, sem sua intervenção, vários fundos teriam quebrado, ampliando a pressão sobre o sistema financeiro.
Pegos de surpresa, vários fundos de pensão foram forçados a vender títulos do governo, dívida corporativa e ações para arrecadar dinheiro e continuar à tona. Segundo especialistas, os fundos estão buscando preencher um buraco entre £ 100 bilhões e £ 150 bilhões. Ainda segundo o BoE, a queda do mercado de títulos “pode ter levado a um aperto excessivo e repentino das condições de financiamento para a economia real”.
Na sexta-feira (14), dia da troca de ministro, também terminou o esquema emergencial de compra de títulos pelo BoE. Ainda há preocupações com a “volatilidade nos mercados” – quando os juros estão subindo, como acontece agora em escala global, o risco de a casa cair aumenta muito. À medida que os bancos centrais aumentam as taxas de juros no ritmo mais rápido em décadas, há nervosismo entre os especuladores quanto a um novo evento surpresa – a la madame Truss ou pior – desencadear outra “grande perturbação” ou até o espectro do “próximo choque”.
Papiro
(BL)