Ex-ministra Márcia Lopes ajudou a construir políticas de combate à fome no Brasil.

Segundo a ex-ministra Márcia Lopes, segurança alimentar terá garantia imediata com a reativação de políticas públicas coordenadas, a partir de uma pactuação com governadores e prefeitos.

A assistente social Márcia Helena Lopes acompanhou de um lugar privilegiado a formação da complexa rede de garantias de segurança alimentar no país. Ela coordenou o GT Fome Zero com 13 ministérios, desde 2004, quando foi secretária nacional de Assistente Social e secretaria-executiva do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), tornando-se ministra, em 2010. 

Por isso mesmo, ela também assiste desolada o desmonte de toda a malha de programas e articulações, assim como do pacto federativo em torno dessas políticas públicas. Um processo que enxerga como um “desabamento” de tudo que foi construído rumo ao mapa da fome em que o Brasil se encontra. “O que é inadmissível num país que produz tanto!”, afirmou em entrevista exclusiva.

No Brasil, 33 milhões de pessoas passam fome. Muitas crianças só têm acesso a refeições na escola, e lá só têm bolacha e suco industrializado para comer, ou precisam dividir um único ovo cozido entre si. Para que elas não repitam o que nem chega a ser uma refeição, recebem um carimbo na pele para evitar que alguém as alimente novamente. O governo de Jair Bolsonaro decidiu praticamente zerar a verba de programas alimentares no Orçamento de 2023, com cortes de até 97% para programas como o Alimenta Brasil.

Márcia testemunhou com a posse do presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, a estruturação de uma rede coordenada de políticas públicas envolvendo 13 ministérios, que respondiam ao combate à fome. Agora, ela vê a necessidade de colocar no combate à fome a centralidade, de novo. 

Quando o presidente Lula, em 2003, anunciou o Fome Zero, ele foi tratado como mais um programa social, mais uma peça de marketing. “Na verdade, era um pilar e eixo de articulação e integração entre as políticas públicas. Com isso, se pretendia criar uma cadeia alimentar que levasse a um processo de desenvolvimento econômico no Brasil, o que ocorreu”, explicou a ex-ministra.

Havia um conjunto de programas nos diversos ministérios que respondiam ao combate à fome. “Os resultado foram visíveis. Não era a mera distribuição de prato de comida, mas um eixo estruturante de diálogo com todo o ciclo de produção, abastecimento, comercialização e acesso dos alimentos, que impacta no sistema econômico e social”, afirma.

Primeira medida de governo

Perguntada sobre qual seria uma primeira medida de governo para acabar com a fome, Márcia diz que Lula já anunciou que vai chamar todos os governadores e prefeitos para estabelecer esta prioridade, e garantir não só a distribuição de renda, mas articular a produção local, reabrir os restaurantes populares e cozinhas comunitárias, com merenda de qualidade. “Fui a Roraima e os dois restaurantes que fui inaugurar em Boa Vista estavam fechados e viraram depósitos”. 

“Esse governo esculhambou com a relação com os prefeitos. Antes, o acesso era direto com o Consea, agora, o prefeito precisa procurar um deputado que tenha relação com o Ministério para marcar uma reunião”, contou. Aparelhos de assistência social, como um CRAS, só funcionam se a prefeitura ou estado garantirem isso, pois nã há mais relação nem recurso do Governo Federal. “O pouco de dinheiro que entra é um cala-boca para não infernizarem o governo”, disse.

Uma das medidas imediatas de um novo governo será a reativação do Consea (Conselho Nacional e Segurança Alimentar). Foi através de sua atuação que Márcia observou a redução de 60% da mortalidade infantil, da desnutrição, a quadruplicação da permanência infantil na escola com as condicionalidades exigidas pelo Bolsa Família. 

Compromisso eleitoral

Márcia ecoa a fala de Lula na campanha eleitoral, de que não tem explicação científica e econômica para o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, o primeiro maior produtor de proteína animal não ter comida para seu povo. Ele diz que a solução imediata para isso voltou a ser sua obsessão.

As medidas apontadas por Lula para uma resposta emergencial, dizem respeito a políticas de transferência de renda, articulação com a agricultura familiar, valorização do salário mínimo e controle da inflação por meio de estoques regulatórios. Mas o fortalecimento do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) também está no radar.

O debate mais amplo sobre o tema não existe, de acordo com a ex-ministra. “A gente não vê o debate econômico direcionado ao combate à fome em outras instâncias de governo, além da Assistência Social. Bolsonaro não quer debater, só quer provocar e ofender”, lamentou. 

Ela disse que, com Lula e Dilma, o tema da segurança alimentar e nutricional fazia parte do debate no Ministério da Fazenda ou das Relações Exteriores, por exemplo. O modo como, em plena pandemia, o agronegócio priorizou as exportações em detrimento do abastecimento nacional, é algo que não aconteceria do mesmo jeito em outro governo. Em outros países, houve controle sobre o abastecimento interno de insumos básicos, durante a pandemia. A falta de estoques reguladores da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) agravaram este quadro, favorecendo a alta inflação de alimentos e a dificuldade de escoamento da produção de agricultores familiares. 

O tratamento dado ao tema da fome por Bolsonaro indigna a ex-ministra, pelo modo como se dirige à assistência social. Bolsonaro se refere ao tema como algo a ser feito pela sociedade, “que ele ajuda”. “Que ajudando, que nada! Isso é direito da população e dever do Estado!”

Esta postura de transferir para a sociedade a assistência social, está concretizada nos cortes de 96% dos recursos orçamentários. Extingue-se o SUAS com esta medida. 

As unidades do SUAS, CRAS, CREAS e Centros Pop funcionam como unidades básicas de saúde, onde a população com dificuldades básicas pode procurar este aparelho de estado que será cadastrada e encaminhada para atendimento de suas necessidades.

Debate inexistente

Lula frequentemente denuncia os gargalos do Auxílio Brasil, que ignora milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade sem assistência (29 milhões fora do programa). O novo recorte também não levou em conta o número de crianças vivendo em cada lar. Sendo assim, uma residência com um adulto recebe o mesmo valor que um lar onde moram várias crianças com a mãe, por exemplo, num total de R$ 600. Além de não exigir contrapartidas de manter as crianças na escola e acompanhar a saúde delas regularmente.

Bolsonaro diz que o auxílio dele é R$ 600 e o do Lula era R$ 194. Márcia diz que este valor era uma média nacional e que muitas famílias recebiam até R$ 600, inclusive. “Qual era a inflação, qual era o valor do salário mínimo? Com os preços de gás e alimentos de hoje, como que faz com R$ 600?”, questiona ela.

Além disso, o Bolsa Família era universalizante, ou seja, obrigatoriamente ia atender todos que coubessem nos critérios. O Auxílio Brasil baseia o atendimento no tamanho do recurso. Nem todos que estão no critério serão atendidos. “Manda o recurso e atende até onde dá, parando ali. O resto da fila fica sem benefício”, explicou.

A atenção do programa Brasil Carinhoso, de 2011, que avançou para o custeio de despesas com manutenção de creches, com educação e alimentação é outra forma de atacar a fome, que deve voltar. O programa retirou mais de 8 milhões de crianças e adolescentes da miséria. Segundo Márcia, todos esses programas mudam de nome no governo Bolsonaro, mas não se efetivam. 

“Não tenho notícia de que o Alimenta Brasil, que era o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), esteja funcionando para alguém!”, afirmou a ex-ministra. “Você pode perguntar para qualquer gestor público, inclusive da base de apoio ao Bolsonaro, que ele vai dizer que não aconteceu nada, porque não tem acordo”, disse ela, citando o 22o. Encontro do Colegiado Nacional de Gestores de Assistência Social (Congemas), em Foz do Iguaçu, no início de junho.

Aliás, o Alimenta Brasil é um exemplo explícito de “copia e cola” mal feito pelo programa de governo de Bolsonaro, com erros conceituais. Em vez de compras da agricultura familiar, fala em compras de alimentos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que é um programa de crédito para agricultores. “É tudo para inglês ver”, resume.

Desabamento

O “incompreensível desabamento” não foi gradual e lento. Com o golpe do impeachment houve corte imediato de recursos e afastamento do diálogo com prefeitos e governadores. “Para que uma política pública funcione é preciso respeitar o pacto federativo e conversar com os gestores, com a militância das políticas públicas e os usuários. Brasília sozinha não consegue executar e coordenar tudo. Com Temer e Bolsonaro criou-se esta cisão, porque tudo que era do Lula e da Dilma não prestava”, disse a ex-ministra.

Com os cortes de orçamento houve a paralisação da construção de cisternas, dos restaurantes populares, das cozinhas comunitárias e do PAA. As cisternas, por exemplo, fornecem água para consumo e para produção alimentar em áreas rurais de seca.

Com a extinção do Bolsa Família, convertido a Auxílio Brasil, houve a ruptura total com as prefeituras. Toda a estrutura tinha uma conexão em cada município que acompanhava as populações vulneráveis e famílias. Márcia explica que a rede de programas respeitava as diferenças de cada município, pois alguns têm as populações quilombolas, indígenas, outras são regiões metropolitanas. 

“Também mapeávamos produtores de alimentos, como pescadores, quebradeiras de coco, pequenos produtores de leite, que levaram à criação de programas que sofriam resistência dos grandes laticínios, que ameaçavam parar a pauta do Congresso”, relata Márcia, contando que eram comprados 800 mil litros de leite por dia dos pequenos produtores.

“Tudo isso foi desabando junto com mecanismos para garantir a alimentação escolar de qualidade, o crédito ao agricultor familiar (Pronaf). Veio a perda no valor do salário mínimo, o aumento da inflação dos alimentos”, pontuou.

O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) deve receber verba de R$ 48,3 milhões em 2023, valor drasticamente menor do que os R$ 967,73 milhões indicados na proposta inicial para 2022. Mesmo esse montante tem sido insuficiente para o funcionamento dos centros de assistência.

(por Cezar Xavier)