Sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em 24 de maio, na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo. — Foto: Reprodução/YouTube

O júri simbólico do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) leu nesta quinta-feira (01) a sentença que condenou o presidente Jair Bolsonaro (PL) por crimes contra a humanidade e violação dos direitos humanos durante a pandemia da covid-19. Segundo a organização, Bolsonaro teve contribuição direta para a morte dos 684 mil brasileiros que faleceram até o momento em virtude da doença no país.

Uma política que considerasse a gravidade da doença, acelerasse o acesso a vacinas, não recomendasse medicamentos ineficazes e não apostasse na imunidade de rebanho teria salvo pelo menos 100 mil pessoas. Por isso mesmo, a morte em massa teria sido uma decisão dolosa, pela opção pela economia em detrimento das vidas humanas.

Na sentença, foi recomendado que o caso seja levado ao Tribunal Internacional de Haia para que Bolsonaro seja investigado por “constante crime de genocídio contra povos nativos do Brasil”. Apesar disso, o Tribunal não atendeu ao pedido de condenação por genocídio. O jurista argentino Eugénio Raúl Zaffaroni, diz que o governo sabia da vulnerabilidade de grupos indígenas e negros, mas seria necessário haver provas do direcionamento das políticas a uma determinada população. “Esse tribunal é cauteloso sobre a qualificação do genocídio, para evitar a banalização do conceito”, disse.

“Contrariando a posição unânime de cientistas de todo o mundo e as recomendações da Organização Mundial da Saúde, Bolsonaro não só fez com que a população brasileira não adotasse as medidas de distanciamento, isolamento, proteção e vacinação destinadas a limitar a infecção, como várias vezes criou vários obstáculos a elas, frustrando as tentativas de seu próprio governo de estabelecer políticas de alguma forma destinadas a proteger a população do vírus”, destacou a sentença.

Um dos membros da corte, Gianni Tognoni, declarou na abertura do evento que o governo jamais respondeu aos convites da entidade para participar do processo. Segundo ele, o principal foco do tribunal foi a “violação sistemática” dos direitos do povo brasileiro, diante das políticas adotadas durante a covid-19. “Ao violar profundamente seus poderes, o governo e o presidente transformaram uma emergência severa, que pedia proteção adequada, em uma ocasião para atacar populações já discriminadas, qualificadas como descartáveis”, disse. Segundo ele, a vacinação foi prova disso.

“Não há dúvida que milhares de vidas foram extintas [no Brasil] por efeitos das decisões do governo presidido por Jair Bolsonaro. (…) não se pode considerar que esse dolo foi eventual, uma vez que houve o resultado das mortes em massa com a intenção de privilegiar a economia em detrimento da vida humana”, disse Zaffaroni, que leu a sentença.

“Bolsonaro cometeu dois atos ilegais: grave violação de direitos humanos e crime contra a humanidade ao gerir a política de saúde brasileira sem ouvir as orientações dos cientistas e da Organização Mundial da Saúde”, completou Zaffaroni, que é ex-ministro da Suprema Corte da Argentina e atual juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O júri que condenou Bolsonaro foi presidido pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli, professor catedrático da Universidade de Roma, e outros juristas internacionais como Alejandro Macchia e Eugenio Raúl Zaffaroni (Argentina), Joziléia Kaingang, Rubens Ricupero, Vercilene Kalunga e Kenarik Boujakian (Brasil), Boaventura de Sousa Santos e Luís Moita (Portugal), Clare Roberts (Antigua e Barbuda), Jean Ziegler (Suíça), Nicoletta Dentico (Itália) e Vivien Stern (Grã-Bretanha).

Julgamento simbólico

O TPP é um tribunal de opinião simbólico, que não tem efeito condenatório do ponto de vista jurídico, mas cujas decisões podem ser encaminhadas para organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Tribunal Internacional de Haia, na Holanda, onde são julgados internacionalmente os crimes contra a humanidade e os genocídios.

Se fosse estabelecido em um tribunal como o de Haia, tal sentença poderia até representar a prisão perpétua do acusado. Ainda assim, serve de chancela importante para pressionar o Palácio do Planalto e expor Bolsonaro internacionalmente.

O advogado Maurício Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, disse que já há uma denúncia contra Bolsonaro e o governo brasileiro em análise na procuradoria do Tribunal Internacional na Holanda e que a entidade, junto com a Comissão Arns, irão anexar a sentença do TPP no processo.

O julgamento de Bolsonaro começou em maio e ocorreu simultaneamente em São Paulo, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) – onde a sentença final foi lida nesta quinta (1º), e em Roma, na Itália, e foi transmitido pelas redes sociais ao vivo em várias sessões.

Na acusação, esses grupos afirmaram que o presidente propagou intencionalmente a pandemia de covid-19 no país ao adotar postura anti-isolamento e contra as vacinas.

“A acusação denuncia o presidente Bolsonaro por ter, no uso de suas atribuições, propagado intencionalmente a pandemia de Covid-19 no Brasil, gerando a morte e o adoecimento evitáveis de milhares de pessoas, em uma escalada autoritária que busca suprimir direitos e erodir a democracia, principalmente da população indígena, negra e dos profissionais de saúde, acentuando vulnerabilidades e desigualdades no acesso a serviços públicos e na garantia de direitos humanos”, afirma a Comissão Arns.

“Verificamos uma estratégia federal na disseminação da Covid-19”, disse a professora da Faculdade de Saúde Pública da USP Deisy Ventura, uma das testemunhas que se pronunciou em maio.

A acusação contra o presidente brasileiro foi sustentada nas sessões de 24 e 25 de maio por Eloísa Machado, advogada, professora de Direito Constitucional da FGV Direito-São Paulo e membro apoiadora da Comissão Arns; Maurício Terena, advogado e assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, e Sheila de Carvalho, advogada e articuladora da Coalizão Negra por Direitos.

Criado em Roma em 1979, o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) é considerado um sucessor do Tribunal Russell, que foi estabelecido em 1967 para investigar crimes de guerra no Vietnã.

O júri é composto por especialistas da área do direito, das ciências sociais e de saúde pública e conta com 13 pessoas de diferentes nacionalidades. Além dos jurados, participaram das sessões testemunhas convocadas pela acusação, que deram depoimentos sobre a atuação do governo federal na pandemia.

Governo ignora sentença

Questionada sobre o julgamento do presidente Jair Bolsonaro, a Advocacia Geral da União (AGU) havia declarado no início do julgamento que “não existe Tribunal Permanente dos Povos no sentido jurídico do tema, muito menos ao qual o Brasil tenha aderido por meio de tratado internacional” e que, “sendo assim, não há atuação da AGU”.

Apesar disso, a capacidade reconhecida pelo TPP de pressão internacional não deveria ser ignorada pelo governo. Não houve sequer preocupação de tentar incluir na defesa os elementos apresentados durante a CPI da Covid, no Senado. Ao menos, uma manifestação crítica poderia ser feita pelo governo, que ignorou o fato.

Também em nota, o Itamaraty disse à época que “o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) constitui iniciativa criada pela sociedade civil. Seu exercício não se confunde com atuação de tribunais internacionais, constituídos pelos Estados, perante os quais o Itamaraty tem competência para representar a União”.

“Por esse motivo, não seria atribuição deste Ministério enviar representante a evento dessa natureza, particularmente quando realizado em território nacional”, completou o Ministério em maio.

(por Cezar Xavier)