Sigilos impostos por Bolsonaro atentam contra interesse público
Imbuído de seu espírito autoritário, o presidente Jair Bolsonaro (PL) já deixou claro seu desprezo pelas instituições e pelas regras que formam o arcabouço legal do Estado democrático de direito. É nessa seara que se encaixam a falta de transparência — explícita, entre outros aspectos, na determinação de sigilo de até 100 anos para informações caras ao presidente — e o desrespeito do mandatário com aqueles que questionam suas ações.
Nessa semana, o tema do sigilo de 100 anos voltou à tona com força. “O atual presidente não exigiu a investigação do Queiroz, dos filhos ou das denúncias da CPI contra Pazuello. Ele não só coloca a sujeira embaixo do tapete, como transforma em sigilo de 100 anos”, disse o ex-presidente Lula (PT) pelo Twitter, após entrevista nesta quarta-feira (31) a uma rádio de Belém, na qual também tratou do assunto. Lula também tem dito que pretende revogar os sigilos impostos por Bolsonaro.
Da mesma forma, a questão esteve em pauta durante o debate de domingo (28) e figurou entre os temas mais buscados na internet naquele dia.
Mas, não é de hoje que Bolsonaro faz pouco caso da transparência. Uma postagem feita em abril no perfil do presidente mostra seu apreço pelo uso do sigilo. Após um internauta questionar “porque todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato, você põe sigilo de 100 anos? Existe algo para esconder?”, Bolsonaro respondeu em tom irônico: “Em 100 anos saberá”.
Em outra oportunidade recente, durante entrevista ao Flow Podcast, Bolsonaro disse que sua vida se tornaria um “inferno” caso não houvesse a possibilidade de usar o sigilo. e, sobre quem ele recebe no Palácio da Alvorada, afirmou que não “deve satisfação a ninguém”.
Interesse público e direitos individuais
Impor sigilo de 100 anos indiscriminadamente pode ser considerada, em alguns casos, deturpação da Lei de Acesso à Informação (LAI), sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 2021, e cujo espírito é ter a publicidade como regra e o sigilo como exceção, em conformidade com o que estabelece a Constituição.
Pela lei vigente, informações ou documentos públicos podem ficar fechados por até 25 anos se forem ultrassecretos; 15 se secretos e cinco se forem de caráter reservado.
A regra que possibilita até 100 anos de sigilo diz respeito apenas a informações de cunho pessoal. E mesmo assim, há exceção. O parágrafo 4º do artigo 31 da LAI estabelece que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.”
Também no caso da Lei Geral de Proteção de Dados, o interesse público deve ser considerado, em equilíbrio com os direitos individuais. “Tanto a LAI quanto a LGPD determinam que o interesse público das informações pessoais produzidas e tratadas pela administração pública deve ser o norte da decisão de divulgá-las ou retê-las. Ou seja, há que se proteger os dados pessoais, no sentido de preservar o direito à privacidade, à intimidade e à honra; mas não às custas do interesse público. E esse deve ser um entendimento formal aplicável para toda a administração pública”, escreve Marina Iemini Atoji, da ONG Transparência Brasil, no livro “A LAI é 10 – O Brasil após uma década da Lei de Acesso à Informação”.
Porém, muitas vezes, esse tipo de proibição tem sido aplicado na administração pública, seja por receio de servidores em expor aspectos que podem posteriormente ser considerados pessoais, seja por governantes que buscam esconder questões incômodas.
Casos emblemáticos
No governo Bolsonaro, alguns casos se tornaram emblemáticos do uso questionável do sigilo de 100 anos. Segundo reportagem de O Estado de S.Paulo, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, um a cada quatro pedidos de informação rejeitados pelo governo federal tiveram como justificativa o sigilo da informação.
São exemplos as restrições aplicadas por Bolsonaro sobre a carteira de vacinação contra a Covid-19 do presidente; sobre o processo que apurou a participação do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello em um ato político de apoio a Bolsonaro no Rio; sobre o processo relativo às rachadinhas que envolvem o senador Flávio Bolsonaro; sobre os crachás de acesso ao Palácio do Planalto de Carlos e Eduardo Bolsonaro e sobre reuniões do presidente com os pastores investigados no caso do “balcão de negócios” do Ministério da Educação, decisão depois revista.
Vale lembrar ainda que já no começo de seu mandato, em janeiro de 2019, Bolsonaro editou um decreto mudando as regras para a classificação de documentos sigilosos, ampliando assim o rol de autoridades com esta prerrogativa. Pouco tempo depois, em fevereiro daquele ano, a Câmara aprovou o Projeto de Decreto Legislativo 3/19, revogando a medida do governo e antes que a matéria fosse votada no Senado, Bolsonaro editou novo decreto restabelecendo as regras de 2012.
Mais tarde, já no contexto da pandemia, foi editada a Medida Provisória 928/2020, que suspendia os prazos de resposta para pedidos de informação em todos os órgãos federais cujos servidores estivessem em trabalho remoto, revogada depois pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Sob o aspecto normativo, as investidas contra a publicidade e transparência das informações de interesse público começaram cedo no atual governo, já em janeiro de 2019, por meio do decreto 9.690/19, que passou a ampliar significativamente o número de agentes públicos com autorização para determinar o sigilo de informações públicas. A iniciativa foi fortalecida, em abril do mesmo ano, pelo decreto 9.759/19, que reduziu a participação de setores da sociedade no governo ao extinguir grande parte dos conselhos, comitês e comissões até então existentes da administração pública federal”, escreveu o advogado Henrique Abel, mestre e doutor em Direito pela Unisinos/RS, em artigo publicado do site jurídico Migalhas.
“Embora existam precedentes em administrações anteriores, o governo Bolsonaro parece decidido a tornar a política do segredo algo como sua marca registrada”, apontou Abel, no mesmo artigo.