Pesquisa revela dimensão inédita de violência política no Brasil
Quantas vezes, nos últimos tempos, tivemos receio de externar nossas posições políticas, seja verbalmente, seja usando um adesivo no carro ou uma camiseta de nosso candidato favorito? O temor de sofrer algum tipo de agressão inibe o direito constitucionalmente garantido de cada cidadão poder manifestar, de maneira pacífica, a sua opinião. E esse medo não ronda apenas aqueles que se viram envolvidos direta ou indiretamente em situações de violência política. Ele permeia a sociedade e foi captado em pesquisa na qual 67,5% dos entrevistados afirmaram ter medo de serem agredidos em razão de suas preferências políticas ou partidárias.
O estudo “Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022 – Percepções sobre medo de Violência, Autoritarismo e Democracia” foi realizado pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A pesquisa que gerou o documento — tornado público neste mês de setembro — foi feita pelo Datafolha entre os dias 3 e 13 de agosto com 2.100 pessoas.
O resultado traduz um sentimento geral que ganhou corpo desde que Jair Bolsonaro (PL) chegou ao poder. Na posição de chefe de Estado, o presidente passou a irradiar com maior capacidade de propagação e de influência — possíveis graças à posição que ocupa — ideias que sempre pautaram seus comportamentos na vida pública.
Como elementos centrais do bolsonarismo estão o autoritarismo — não à toa, o estudo revela que o país é apontado como um dos dez com maior tendência autocrática desde 2019 —, além da violência e da agressividade contra todos que não compactuem com sua visão de mundo. Ao longo de quatro anos, esse tipo de posição foi sendo não apenas espalhado como naturalizado: passou a ser normal agredir, ferir e até matar para fazer valer uma determinada posição política.
Na avaliação de David Marques, que compõe a equipe técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), “os números da pesquisa mostram um nível bastante grande de medo e de vitimização mesmo por questões políticas”. No caso da vitimização, o estudo aponta que 3,2% dizem ter sofrido ameaças, por motivos políticos, apenas no último mês. “Se extrapolada a amostra da pesquisa, serão cerca de 5,3 milhões de pessoas vítimas de ameaças por suas posições políticas nos 30 dias anteriores ao campo da pesquisa”, diz o estudo.
Erosão x valorização da democracia
Marcos Rolim, jornalista e doutor em Sociologia, diz que os dados do estudo revelam uma dimensão inédita de violência política no país. “Sempre tivemos episódios de violência política no Brasil, mas nada se compara ao que estamos vivendo hoje. O tema distintivo é a formação de uma base de massas de apoio ao fascismo, parte dela armada e disposta a empregar a violência disseminadamente”.
Para ele, a evidência a respeito do medo de se manifestar politicamente é o mais forte indicador de erosão da democracia no Brasil. “Quando as pessoas têm medo de expor sua opinião, de vestir uma camisa vermelha ou de colocar um adesivo no carro, porque percebem que o risco de agressão física é iminente, então isso é um sintoma da degradação do espaço público”.
Mas, se por um lado, a violência política intimida os brasileiros, por outro, foi identificado um amplo apoio a questões que se relacionam à valorização da democracia. Um exemplo: 89,3% dos entrevistados concordam com a frase “o povo escolher seus líderes em eleições livres e transparentes é essencial para a democracia”. Além disso, 88% afirmam que o vencedor das eleições e reconhecido pela Justiça Eleitoral deve ser empossado, opinião que vai na contramão de toda a pregação golpista de Bolsonaro cujo sentido é deslegitimar qualquer resultado que não seja a sua própria vitória.
Outro ponto importante do levantamento é que 88,5% acreditam que é essencial à democracia a participação popular nas principais decisões governamentais. E quase 63% dizem ser importante que tribunais sejam capazes de impedir o governo de agir além da sua autoridade. Vale destacar também que 66% dos entrevistados não acreditam que armar a população aumentará a segurança.
Além disso, na comparação com pesquisa realizada em 2017, o Índice de Propensão ao Apoio a Posições Autoritárias caiu de 8,10 para 7,29 agora. Conforme destaca o estudo, esse índice “pode ser considerado como indicativo de diminuição da adesão ao autoritarismo. No entanto, apesar da sua diminuição, ainda representa um grau forte de apoio a posições autoritárias”.
Outro aspecto sintomático do momento atual trazido pela pesquisa é que nas camadas mais vulneráveis, onde as desigualdades se expressam de maneira mais aguda, “a democracia tende a ser relativizada, ao mesmo tempo em que se anseia pela garantia de direitos. Ou seja, um apoio menor à democracia em paralelo com maior apoio a direitos pode indicar que os sentidos e significados da democracia estejam pouco distribuídos entre as populações que deles mais poderiam usufruir”, salienta o estudo.
Reconstruir as relações sociais
Há uma série de conclusões que podem ser tiradas do estudo, mas uma questão central que vem à tona é o grau de destruição do tecido social ocorrido nos últimos anos, desde que a radicalização bolsonarista tomou o ambiente político fazendo reinar o ódio e a agressividade.
“Recompor esse tecido social e a própria arena política no Brasil passa necessariamente por uma repactuação da forma de fazer política. A gente passou nos últimos quatro anos por uma agenda de desconstrução da institucionalidade, inclusive do ponto de vista da interferência política no funcionamento de algumas instituições — as denúncias mais significativas foram com relação à Polícia Federal —, mas a gente tem também toda a discussão a respeito da influência do presidente em relação às polícias militares. Toda essa influência e esse tensionamento provocado tem efeitos significativos”, diz David Marques.
Marques também avalia que a questão da segurança ou do não oferecimento de segurança para todo mundo “acaba também impactando inclusive no próprio direito político, no direito de votar, de se manifestar e assim por diante”. Para ele, a segurança pública precisa também ser reconhecida “como fator fundamental para o debate político e para a construção de um ambiente mais democrático no Brasil”.
Para Marcos Rolim, “a primeira coisa importante a se perceber é que a emergência desse discurso intolerante e propositivo da violência não tende a retroceder nos próximos anos”. Por isso, argumenta, “derrotar o fascismo eleitoralmente é muito importante, vital mesmo, mas penso que seja ilusório imaginar que isso possa encaminhar naturalmente a solução do problema. A democracia no Brasil precisará construir antídotos às perspectivas politico-ideológicas que conspiram contra ela, mas, para isso, precisa ser reformada em um sentido republicano porque, na verdade, temos menos república que democracia no Brasil”.
Acesse aqui a íntegra do estudo