China avança em tecnologia própria na produção de microchips (Divulgação)

O articulista Manuel Gouveia, ao examinar a “Lei da Ciência e Chips” recém assinada pelo governo Biden – em que o alvo explícito é o desenvolvimento chinês no estratégico setor dos semicondutores de ponta – observa com propriedade que o livre comércio [ou, se preferirem, a globalização] “produziu um resultado que em absoluto não ‘devia’ ter produzido”.

“O texto do Chips Act não deixa dúvidas que há um país – a China – que os EUA sabem que os está a ultrapassar”, ele enfatiza. Ele registra, ainda, que a essa guerra econômica contra a China “é o caminho escolhido pelos EUA para parar o desenvolvimento pacífico que estava conduzindo a uma multipolaridade que não lhe é suportável”.

Lei que foi aprovada no Congresso dos EUA, que não concorda em quase nada, a não ser quando é contra a China – e a Rússia, e que destina US$ 52,7 bilhões de incentivos para fábricas nos EUA, mais US$ 24,3 bilhões em isenções fiscais, e ainda mais US$ 203 bilhões para ‘investigação e desenvolvimento’, totalizando US$ 280 bilhões. Cuja pré-condição essencial é a proibição de que a empresa beneficiada tenha qualquer participação em algum projeto de expansão da produção e desenvolvimento de microchips na China.

“EUA e Nancy Pelosi não dão ponto sem nó”, assinala o articulista, sobre o acintoso teor anti-China da nova legislação. Que chega a detalhar o veto a qualquer universidade norte-americana de ter acesso a esses fundos caso mantenha algum acordo com um ‘Instituto Confucio’ – este, um instituto bancado por Pequim para difundir e ensinar a língua e a cultura chinesa, equivalente à Maison de France ou à Cultura Inglesa!

Uma das poucas vozes no Congresso dos EUA que se pronunciaram contra a medida, o senador Bernie Sanders advertiu que a questão que se deveria colocar é “se devem os contribuintes americanos oferecer à indústria dos microchips um cheque em branco de mais de 76 bilhões de euros quando essas companhias de semicondutores estão fazendo bilhões de dólares em lucros e pagando aos seus executivos exorbitantes pacotes de compensação?” A resposta a essa questão – sublinhou – deve ser “um sonoro não».

Gouveia comenta que da próxima vez que algum defensor do neoliberalismo vier com a superioridade da iniciativa privada, “este é um bom exemplo de como, de fato, funciona a maior economia capitalista do planeta: assente em fundos públicos (só para esta indústria foram distribuídos mais apoios que o total do PIB português, que ronda os US$ 210 bilhões)”.

O autor também ironiza como os arautos da globalização se estreparam. “Um dos princípios básicos do verdadeiro movimento do mundo – dialético – é que as coisas tendem a transformar-se no seu contrário. Principalmente para quem fica parado, convencido que o resto do mundo parou com ele”.

A globalização é “um instrumento para rasgar as fronteiras nacionais, fazer entrar as multinacionais e o capital estrangeiro, concentrar e centralizar capital, principal e naturalmente na primeira potência capitalista, os EUA”, registra Gouveia.

Mas – acrescenta – “produziu um resultado que em absoluto não ‘devia’ ter produzido, e que faz com que um desenvolvimento pacífico durante mais uns anos levasse à completa ultrapassagem da economia dos EUA, que acabaria por implicar a sua ultrapassagem tecnológica e militar, o que seria uma catástrofe para aqueles que vivem nos EUA do muito que roubam ao mundo ou lhe tomam em empréstimo eterno”.

Basta olharmos para os princípios da OMC, que no fundo representam a forma de globalização que o imperialismo norte-americano impôs ao mundo neste século, para vermos que os EUA já ultrapassaram a fase de exigir a sua aplicação universal, destaca o autor. “Vejamos, desde logo, o primeiro deles, o princípio da ‘não discriminação’: ‘Um país não deve discriminar entre os seus interlocutores comerciais e não deve discriminar entre os seus próprios produtos, serviços ou nacionais e os produtos, serviços ou nacionais de outros países’”.

E o ‘livre comércio’?

É Gouveia quem indaga: “Quando se lê a Chips Act, o que sobra deste princípio?” Ele assinala ainda que “a política de sanções que os EUA (e também a UE) têm desenvolvido desde há vários anos é toda ela contrária a este princípio”.

“Um princípio que os EUA continuam a querer impor a todo o mundo que lhe está subordinado, mas do qual querem excluir a China. Porque contra a China não funciona. E, recorrendo cada vez mais à extraterritorialidade, tentam impor aos restantes países que se alinhem com essa exclusão”, destacou o articulista.

“Qualquer país que almeje um desenvolvimento soberano e independente torna-se um alvo do imperialismo norte-americano, que só aceita relações de subordinação e com provas de vassalagem. Mas o texto do Chips Act não deixa dúvidas que há um país – a China – que os EUA sabem que os está ultrapassando”.

“A assunção de uma guerra – por enquanto sobretudo econômica – contra a China, depois das provocações contra a Rússia que resultaram na guerra em curso, são o caminho escolhido pelos EUA para parar esse desenvolvimento pacífico que estava conduzindo a uma multipolaridade que não suporta. E não se trata de um problema de postura ou personalidade. É que sem a hegemonia mundial, toda a sua sociedade colapsaria”.

Mundo multipolar

Quanto aos investimentos na indústria chinesa, é verdade que o Governo chinês tem um papel de promoção da produção e investigação nacional, concorda o autor, mas assinala que em 2020 a China tornou-se o país do mundo que recebe maior volume de investimento estrangeiro, ultrapassando os EUA que ocupavam esse posto.

E – como ele ressalta – não são os Partidos Comunistas do mundo inteiro os que investem na China, “são as grandes empresas capitalistas, nomeadamente dos EUA, correndo atrás de mais lucros, e por isso a necessidade de leis a, na prática, limitar e proibir esse investimento”.

Curiosamente – ou talvez não – nunca é destacado nestas “notícias” o que de fato é notável sobre o Partido Comunista da China: é o Partido dirigente da China, que conseguiu, jogando com as regras que lhe foram impostas, nomeadamente as do livre-comércio, impedir que o processo produzisse o resultado que se julgava inevitável – uma maior subordinação aos EUA – e antes pelo contrário, construiu um processo de afirmação nacional e reivindicação de um mundo multipolar que está destruindo o projeto imperial dos EUA, assente na PAX Americana e no poder das suas legiões para escravizar os “bárbaros”, conclui Gouveia.

Papiro